Moral Racional e Moral Revelada

   Vivemos num mundo caracterizado pela ocorrência de acelerações históricas que se tornam responsáveis por sucessivas mutações sociais. A verdadeira mundialização - iniciada com os Descobrimentos portugueses e, em particular, com a viagem de Vasco da Gama (1) -, que é de natureza essencialmente económica, desenvolve uma vastíssima rede de relações sociais estimuladora da mobilidade humana. Ora, o incremento do processo migratório abre caminho à hibridação cultural e esta, por sua vez, desperta movimentos quer da parte de pessoas mais conservadoras e receosas da concorrência, quer simplesmente mais apegadas aos valores nacionalistas e ao inerente “espírito de nação (2)”.

Principais rotas migratórias dos muçulmanos

 Principais rotas migratórias dos mçulmanos

  De entre os vários contextos relacionados com o fenómeno da globalidade, afigura-se-nos que é no da religião que se acumula o maior número de contestações violentas e onde se levantam maiores problemas. Importa, por isso, que sobre esta reacção se proceda a uma análise serena, colocando-se desde logo as questões de se será possível evitar tal mobilidade e de se ela será, de facto, prejudicial.
  Em relação à primeira questão, e no plano dos factos, tudo indica que, não obstante a acção das forças que de tempos a tempos tentam contrariar a marcha dos acontecimentos, é expectável que continue a prevalecer o impulso orientado para o incremento do comércio mundial, caminhando-se pois, inevitavelmente, para a globalização.
Sendo este processo inevitável e, diremos até desejável se responsável e construtivo, cabe-nos então saber gerir, melhor do que ninguém, a diferença resultante dessa mobilidade humana e da consequente fluidez das religiões e respectivos padrões culturais - sobretudo na medida em que esta fluidez implica, para a Europa secularizada, um desafio que nos convida a uma reflexão sobre o impacto das vivências religiosas dos migrantes na cultura ocidental. Tal implica, necessariamente, o reconhecimento da defesa dos direitos humanos tendo em vista uma convivência pacífica e assente na concórdia - o que não é sinónimo de concordância.
  E é precisamente neste campo que somos frequentemente confrontados com um risco pouco saudável: o de cairmos no relativismo, que é a solução adoptada por quem não tem a certeza de nada e que, por isso, tudo aceita por igual; ou por quem, para dissimular a tentativa de subtrair a sua própria inteligência ao confronto da criatura com o Criador, sugere simplesmente o postulado da equivalência de todas religiões.

Principais rotas migratórias dos budistas
Principais rotas migratórias dos budistas 

Com efeito, ao considerar-se que todos os princípios se equivalem por não haver uns melhores do que outros, cai-se fatalmente naquela perversão da liberdade e da tolerância a que chamamos permissividade.

   Por isso, numa sociedade como a nossa, em que o senso comum se inclina para soluções em que a nota dominante é a racionalidade, será por meio do debate de ideias e do juízo sobre comportamentos que este assunto deve ser apreciado e desenvolvido - mesmo em matérias circunscritas à esfera privada.
   Admitida a permanente evolução da vida, dir-se-á que a “moral velha”, religiosa, imperativa, de protecção ao indivíduo e de equilíbrio estático, se revela incompatível com a ética secular “humana”. Não só pelo seu conteúdo muitas vezes misterioso e susceptível de interpretações fundamentalistas, mas também porque, ao ignorar a evolução paralela e mútua do próprio Homem, esquece que os valores titulares sob os quais se formam os seus juízos e tradições também estão sujeitos ao mesmo progresso.
   Não se pode reconhecer a evolução da Natureza e da Técnica ignorando, ao mesmo tempo, o facto de os dogmas terem apenas valor metodológico e pedagógico e, como fórmulas para ensinar e aprender, deverem, tal como certas prescrições morais com pretendida origem divina, evoluir com a História e a Cultura.
   O fenómeno religioso tem-se processado evolutivamente através da História, desde o feiticismo das religiões primitivas ao politeísmo das religiões antigas, passando pela transição monoteísta (3). E a moral deve também acompanhar este progresso em vez de servir para justificar, redimir ou absolver taras atentatórias do que chamamos “direitos da pessoa humana” que contaminam as religiões e as culturas que elas edificam.

Principais rotas migratórias dos hindus

Principais rotas migratórias dos indus

   A moral perenemente jovem tem a obrigação, grave e vital, de, sem negar a ética religiosa nem desprezar as Tradições da Humanidade, associar-se lucidamente ao progresso humano gerado pelo desenvolvimento da ciência. A moral dinâmica acompanha a evolução dos costumes, implicando esta, por seu turno, a evolução do comportamento fisio-psicológico. E como o conteúdo das suas normas possui uma legitimação racional, é compreensível e demonstrável por meio de argumentos. Ganha, por isso, uma espantosa capacidade de aceitação espontânea, independentemente da diferenciação cultural, mesmo nos casos mais sensíveis que ofendem directamente a dignidade da pessoa humana, como sejam a poligamia e a excisão feminina (em nome da dignidade da mulher), ou a diferenciação social com base em privilégios e à margem dos méritos pessoais. Nós, que sabemos não se aceder à verdade senão pela humildade, estamos habilitados a afirmar que a paz em que as nações e as civilizações poderão convergir eficazmente só pode ser aquela que provém dos “homens de boa vontade”. E, por isso, encaramos este desafio como um providencial convite a repensar os dados da nossa filosofia com base no diálogo, a fim de reencontrar nela dimensões implícitas, ou a partir dela abarcar horizontes ainda mais profundos.

   E como a filosofia rosacruz está para o cristianismo como o centro para a circunferência ou o núcleo para a casca, o nosso esforço satisfará a um só tempo as exigências de uma moral natural, racional e científica, e os mandamentos da moral revelada - que ainda não possam identificar-se com as exigências da ciência e da moral. O resultado será um contributo, franco e decididamente construtivo, para que a civilização ocidental continue a assumir, consciente e generosamente, a responsabilidade da construção do Mundo e do Homem, da solidariedade internacional e da unificação planetária.

F. M. C.

(1) Cf. Jorge N. Rodrigues e Tessaleno Devezas, Portugal, o Pioneiro da Globalização; Centro Atlântico, 2011.
(2) Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; Lxª, 2005; pág. 282.
(3) Id., Ob. cit., págs. 289, 293.