EDITORIAL
Desafios da Modernidade
Uma breve reflexão sobre as raízes da unidade europeia poderá ajudar-nos a compreender a razão pela qual muitos valores da Modernidade têm a sua matriz no cristianismo.
De facto, os traços mais típicos e positivos da Modernidade — como sejam o nascimento da ciência moderna e a sua relação positiva com a técnica e o trabalho humanos; o reconhecimento dos direitos do homem; o espírito de liberdade e criatividade inventiva que estão na base destes desenvolvimentos científicos e éticos; os direitos individuais e políticos; a consolidação das ideias de Estado de direito e de democracia — têm no cristianismo a sua fonte mais importante, se não mesmo exclusiva.
É certo que estas realidades se impuseram ao longo do tempo através de vias autónomas e por vezes até conflituais com as instituições eclesiásticas, mas nem por isso deixaram de ser fruto da ideia cristã.
E foi até, aliás, a partir desta experiência de Modernidade que o cristianismo acabou por revelar o seu carácter eminentemente universalista. É inegável que a cultura e as «ideias europeias» se expandiram progressivamente no mundo inteiro no sentido de uma ocidentalização — ou europeização — tendencial do planeta.
A cultura é um elemento importante de qualquer civilização, a par da história, da língua e, especialmente, da religião. Na verdade, estes factores são bem mais determinantes do que as ideologias ou regimes políticos.
Existem, no entanto, conceitos ocidentais que diferem profundamente dos prevalecentes noutras civilizações. Por exemplo, as ideias de direitos humanos, de igualdade, de liberdade, o primado da lei, a democracia ou a separação da Igreja do Estado pouca ressonância encontram noutras culturas.
Por isso, a universalidade destas ideias depara com reais dificuldades de implantação em determinadas culturas. Algumas dessas contradições são visíveis por todos, outras apenas por uma minoria selecta, e outras ainda existem que estão muito para além da visibilidade humana.
Naquele nível de compreensão mais elementar, frequentado pelos que repartem maniqueistamente o mundo entre o bem e o mal (ou entre os bons e os maus), o que é normal é ser-se irredutível, intransigente, fanático. Da mesma forma se é também, nestas circunstâncias, patriota, heróico, carismático, iluminado. A frustração que sente quem assim pensa ao verificar que a Modernidade e o poder lhes escapam por entre os dedos é compensada com a adopção e a propalação de mitos manipulados e falaciosos.
(…)
Nós, que damos mais atenção aos processos do que às coisas, às ideias do que às formas, que sentimos permanente insatisfação na busca da verdade de modo a obter uma visão global e sintética do mundo e do homem, partimos do princípio de que todas as religiões são funcionais. E, como tal, que têm a finalidade de proporem — quando não de imporem — a sua verdade de fé, e não verdades de ordem filosófica ou científica (1).
E se tivermos em conta as perspectivas culturais das três religiões mais influentes da humanidade atual — ou seja, as monoteístas — e o modo como as suas verdades de fé se ligaram às verdades do Poder e das ideologias em circunstancionalismos históricos especiais, compreenderemos por que motivo elas estiveram relacionadas com actos de violência.
Neste contencioso da sociologia religiosa, a nossa função não deve ser a de avolumar delírios e agravar os efeitos negativos da memória atávica dos povos, exacerbando-a com apelos despropositados e desproporcionados, mas antes a de pôr cobro aos ímpetos irracionais das suas «pré-histórias» mentais.
Um caminho a seguir pode ser o de desenvolver uma potencialidade analítica própria que não se limite a repetir o que já foi dito, tendo sempre em conta que o fanatismo e a violência começam nas palavras e na incontível torrente de substantivos e adjectivos sem coerência com a realidade. E se não esquecermos que os valores fundamentais da nossa convivência civilizacional, quanto mais indiscutíveis mais deverão ser defendidos ao nível do diálogo cultural, contribuiremos para harmonizar as tradições religiosas com o progresso do racionalismo e da secularização. O resultado será, naturalmente, uma constante valorização do homem e do mundo à luz da experiência do sagrado e do divino.
Outro caminho pelo qual poderão exorcizar-se os demónios da violência colectiva subconsciente consiste em ir à raiz do problema, também a partir da diferença cristã, tendo em conta que foi a dinâmica do mundo latino que, por sua iniciativa e por razões diversas, permitiu a síntese harmoniosa dos termos do célebre trinómio do século XVIII — Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Com a cabeça fria e o diálogo assente em dispositivos e esforços simétricos e em condições equitativas e recíprocas, as soluções serão positivas, sem jamais se confundir o «pluralismo» das nações democráticas ocidentais com o «multiculturalismo» reivindicado pelos que apontam claramente os limites da existência do Outro.
Estes gestos simples são outros tantos apelos vitais, íntimos e profundos para uma reflexão sobre assuntos aparentemente práticos e comezinhos — a destruição de vidas, a dor física e moral, as calamidades que arrasam cidades e outras violências rituais contra os «inimigos da fé»— sem fraseologias balofas nem a insensatez das teorias de gabinete. E de tanto pensar nas respostas para essas interrogações sempre crescentes, na ânsia de extrair de todo o conhecimento e experiência um modelo intelectual de entendimento do mundo e do homem, as coisas vêm a adquirir outra tonalidade.
E o homem alcança assim o estado de coragem mais difícil: o de ser moderado e conciliador num mundo dominado pelo fanatismo e pela violência.
F. M. C
(1) Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; Lxª, 2005, pp 289-293.