Mensagem de Reflexão para o mês de Setembro

 

Não há recompensas nem castigos: o que há são consequências

 

 Contestação Sistemática

 

 Sendo certo que não se pode viver sem ideias, sem sistemas, sem convicções, enraizou-se no espírito do homem comum a ideia de que, neste nosso tempo, tudo se contesta. Sendo assim, valerá a pena fazer caso das contestações?

A verdade é que o assunto não é assim tão simples.

Quando existe bom senso, a pessoa comum é, naturalmente, dotada de algum sentido político. Todavia, entregue à sua vida e às suas preocupações, pode não ter a percepção de que os seus comentários, um tanto impertinentes e reflexo de ideias insensatas ou fúteis, possam gerar uma corrente subterrânea capaz de minar os alicerces do mundo estabelecido.

Uns contestam praticamente tudo, excepto o próprio eu. Outros contestam a quase totalidade das instituições - económicas, políticas, sociais, jurídicas… Tais formas de contestação podem ser apelidadas de “intelectuais” e “sistemáticas” porque correspondem a sistemas de ideias, por muito absurdos que alguns sejam.

Mas há outras formas de contestação nas quais, por menos evidente, a intenção do contestatário não é tão perceptível, embora sejam também visadas - ainda que com menor verbalização - todas as estruturas e infra-estruturas da sociedade.

Neste caso, em que não se fundamentam ou desenvolvem claramente juízos (isto é, aquilo que se afirma ou nega de qualquer coisa), exploram-se, em geral, sentimentos irracionais, acentuam-se tendências penumbrosas ou agudizam-se instintos primitivos. E quando, com o pretexto de demonstração, se recorre à palavra falada ou escrita, isso é levado a cabo sob a forma de falácia pretensamente culta e fundamentada - na verdade, sem verdadeiro significado. É exactamente o que convém aos seus autores: não argumentar eticamente, mas antes sugerir, sugestionar, em suma, agir sobre a vida infra-intelectiva.

Não pode deixar de chocar-nos assistir à forma como decorreram algumas contestações sobre o modo como o saber científico foi chamado a procurar uma solução para os problemas da Covid-19. O que nelas mais se evidenciou foi, por um lado, a importância desse conhecimento - apesar de este, naturalmente, não deter o monopólio da verdade médica - e, por outro, o ruído das notícias falsas, meias-verdades ou desinformação que, ao tentarem autolegitimar-se como científicas, estimulavam a violência e a divisão das comunidades locais.

Disse Naomar de Almeida-Filho: “Em tempos de pandemia, tão perigosa quanto as fake news, são as meias-verdades, as quase-mentiras e as falácias. Igualmente virulentas podem ser as verdades, quando manipuladas em jogos maliciosos de linguagem e lógica. As mentiras desmascaram-se em mais ou menos tempo, os mal-entendidos e as meias-verdades eventualmente esclarecem-se, as falácias podem ser desconstruídas. Mas é muito difícil combater a desonestidade retórica embutida em argumentos que contêm verdade, porque o sujeito que as enuncia e propaga tem má-intenção e, por isso, esquiva-se ao debate e reage de modo socialmente irresponsável” (1).

Ora, todas esta acções nem contestação chegam a ser, uma vez que não surgem do conhecimento de ideias assente em bases consistentes e concordante com os factos: trata-se de um conhecimento opinioso, se é que de conhecimento se pode falar quando advém de sugestões, inclinações, crenças, constituindo muitas vezes uma ilusão da realidade.

Do ponto de vista social, o conhecimento dominante ou generalizado é de natureza opiniosa, sendo conhecido como “opinião pública”.

É esta opinião que às vezes dá consenso à acção pública onde se contém o universo de factos que vai desde a aceitação de uma moda até uma decisão política. E pode ser até pela captação da opinião pública que o promotor das contestações venha a adquirir o estatuto que lhe permite, depois, concretizar a sua acção com todas as consequências que ela arrasta.

Uma leitura da história, um olhar à nossa volta, mostram-nos que a opinião pública aceitou faraós, exultou com demagogos, consentiu aristocracias, aplaudiu democracias, e por aí adiante...

O contestatário faz de sábio, de moralista, de mecenas, de homem religioso, de protector das ciências, de pacifista, de amigo das crianças, de patrono dos velhos, enfim, de tudo o que a opinião pública consome nos nossos dias, dentro dos limites e exigências do mercado. E desempenha tudo isso apoiando-se na frágil estrutura de uma opinião pública pouco exigente.

É, por isso, verdadeiramente revelador estudar o perfil, escutar a palavra, perscrutar a vida interior dos contestatários e de quem a humanidade pode vir a depender nas suas imediatas decisões. Torna-se possível, deste modo, apercebermo-nos de que um espantoso espectáculo se desenrola, apoiado na opinião pública dos povos e suportado pela natureza humana.

O mais inquietante é que, à força de se ouvir a acção falaciosa dos sábios loucos, se acabe por aceitar tudo o que a loucura dos ignorantes acabou por impor-lhes. E, nesta aceitação, atraiçoa-se a entidade mais lesada: a Humanidade. A que tudo acaba por pagar.

 

(1) - Citado por Boaventura de Sousa Santos, O Futuro Começa Agora - Da Pandemia à Utopia; Edições 70, Lxª, 2020, p. 273.

F. M. C.

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