ATITUDES PERANTE A MORTE
A Eutanásia e o Direito de Morrer com Dignidade
É difícil encarar uma perda, seja ela de que género for. A variedade é imensa: de bens materiais, de laços afectivos, da identidade pessoal, da saúde. E até de realidades sonhadas e que nunca se possuíram. Todos os seres vivos, sociedades, sistemas culturais e até mesmo objectos estão inevitavelmente destinados ao desaparecimento ao fim de algum tempo. Mas, de todas elas, a morte é a mais temida das perdas. Falar da morte é algo de particularmente desagradável.
Noutros tempos, nomeadamente na Idade Média, a fase terminal da vida revestia-se de um importante carácter social. Assumia-se publicamente essa experiência e reivindicava-se o direito à “boa morte” quando “chegasse a hora”. E preparativos, levados a cabo em plena força da vida, e se tinham os assuntos pessoais em ordem, como testamento feito, meditação sobre o essencial e o acessório e acompanhamento da família e amigos.
A preocupação em se evitar a “morte súbita” não ficava a dever--se apenas a razões de natureza cultural ou a conceitos biológicos. Nem mesmo a perspectiva religiosa — assente na fé, na esperança e no amor divino — eliminava o instinto natural da preservação e o temor por esse momento da verdade. É isso que George Bernanos nos mostra no episódio final do seu Diálogo das Carmelitas. A Madre Superiora, nos derradeiros instantes, exprime com dramatismo e profunda aflição o medo que sente naquele momento de mistério. O tema prende-se com os acontecimentos ocorridos a 17 de Julho de 1794, durante o período do Terror da Revolução Francesa, quando foram executadas em Paris dezasseis carmelitas por “crimes contra o povo francês”. Sobre o texto de Bernanos, Francis Poulenc (1899-1963) compõe uma ópera que exalta a coragem e a fé das religiosas face à profunda inquietação e ao temor que as apoquentam (e que, refira-se, esteve em cena no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, no passado mês de Fevereiro).
A ênfase colocada nesta hora especial deverá antes atribuir-se à percepção de ela estar relacionada com o momento definido pela trama de duas séries de situações determinantes da existência. Uma delas relaciona-se com o “programa” trazido do berço; a outra, com o ambiente e das situações vividas desde o nascimento. A ser assim, o conceito da “boa morte” não se confunde com o da “morte-martírio” nem com o da morte escolhida (suicídio, eutanásia): é, antes, um momento que se aceita e não se escolhe.
E sendo a hora de morrer aquela em que o nosso relógio biológico se desorganiza e desencadeia o processo que há-de paralisar o organismo, a gestão dessa hora pode conduzir a uma perturbação da ordem natural. Ou prolongando a vida do corpo físico, fornecendo-lhe alimento num “excesso terapêutico” mesmo quando a vida deste já não faz sentido, ou, pelo contrário, acelerando a morte de um doente por “razões humanitárias” e numa atitude paternalista, pondo termo à vida — a denominado “eutanásia”, ou morte infligida.
A civilização ocidental, ao preocupar-se cada vez mais com a “arte de bem viver”, tem desviado gradualmente a atenção de qualquer impressão triste ou incómoda. Suprimiram-se os ritos, já não se insiste no desgosto e no mistério, procura-se dar a tudo o que se relacione com a morte um carácter inocente e jovial, para que os vivos permaneçam felizes… apesar da morte e dos desaparecidos. Está cada vez mais esquecida a antiga “arte de bem morrer”. O doente terminal vê--se agora mais reduzido à condição de objecto, ficando na dependência de critérios alheios ou das capacidades do equipamento sanitário. Os trabalho da psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross, pioneira dos estudos de experiências de quase-morte, fizeram ver a necessidade de questionar a morte-entubada, rodeada de sofisticado equipamento hospitalar mas vazia de humanidade e companhia.
Agora, evita-se falar em “eutanásia” pela ressonância afectiva que a palavra produz, inseparável de um período histórico recente, quando foi praticada em nome de alegados interesses de Estado e de raça. Opta-se, assim, por designações como “direito de morrer com dignidade” e outras idênticas.
Afigura-se-nos, porém, que esta mudança terminológica deveria estar associada à valorização do morrer e às implicações sociais e humanas que consideramos necessário estarem ligadas a esse instante, já que “morrer com dignidade” é aceitar a morte natural, sem dores e com o conforto da presença de entes queridos (1.).
Ora, a indiferença generalizada, e até mesmo a negação do sagrado da morte, resulta largamente da falta de atenção que essa experiência tem merecido da parte da Teologia dogmática e da Escatologia. As explicações teóricas, abstractas e visivelmente anacrónicas, forneceram contornos de superficialidade a essa experiência — tão importante — da vida humana. Proclamá-la “o fim definitivo da condição peregrina da pessoa” (2.) sem ter em conta a sua fragilidade se confrontada com todos os “sinais”, ou relatos consistentes, do que verdadeiramente “acontece depois da morte”, só valorizou o que está patente aos sentidos corpóreos(3.). Mais ainda: conduziu à incapacidade, pessoal e colectiva, para analisar este assunto de modo significativo.
Só por erro de interpretação da literatura testamentária, ou então por uma mentalidade fixista e estática, se pode afirmar que cada ser, e em particular cada homem, é constituído por aquilo que é logo na origem, e não por algo que se encontra em permanente devir. Não se pode continuar a negar a luz da evidência da integração do fenómeno vital unitariamente na evolução do cosmo, nem tão-pouco a realidade de um longo processo evolutivo da espécie humana, nem tão-pouco ainda o facto de a consciência, ou mente, sobreviver à morte do cérebro e provocar, ao renascer, pelas suas memórias traumáticas, lesões específicas no corpo físico(4.) Recorde-se que a Igreja só rejeitou a reincarnação no ano de 553, no II Concílio de Constantinopla(5.).
Se aprofundarmos a leitura dos textos bíblicos e estivermos alertados para as profundas alterações que eles sofreram ao longo dos tempos, descobrindo contradições insolúveis e indecifráveis absurdos, e vencida a enorme dificuldade que os seus autores intencionalmente criaram para que ali fosse dito o que lhes interessava mas sem que isso realmente lá estivesse, torna-se claro que neles se refere e se explica satisfatoriamente o processo evolutivo. E vão ainda mais longe: aludem ao fenómeno do retrocesso e degenerescência tal como a paleontologia no-lo apresenta, combinando tudo isso com a doutrina do renascimento, ou reincarnação.
Talvez se possa justificar esta falta de coerência entre a Teologia e a Ciência lembrando que, se é certo que ambas estudam o mesmo objecto, o fazem sob abordagens diferentes e através de métodos diversos, o que levou a que elas nos surjam como disciplinas independentes. Porém, tal não significa que algum tipo de conhecimento deixe de ser partilhado entre a Ciência e a Teologia. Se os progressos científicos não servirem para incrementar a compreensão do homem e, etiologicamente, também do Criador, a mensagem contida nos dados escriturísticos tornar-se-á cada vez menos compreensível e deixará de contribuir para um entendimento claro das relações do Criador com as suas criaturas.
Os nossos leitores mais bem informados não ignoram que a morte é uma experiência como qualquer outra. Assim sendo, ela imprime em cada um de nós uma impressão, espontaneamente ou como resultado de um esforço consciente, e passa a fazer parte da nossa mente. Ora, qualquer percepção, ainda que inconsciente e subliminar ou até mesmo sem a presença da atenção, estará futuramente na base da existência e do comportamento da pessoa(6.). Isto acontece porque a mente, agindo como um espelho, reflecte no espírito as nossas relações de tempo e de lugar com o mundo exterior, mesmo neste período de transição para os mundos interiores.
E como os cinco sentidos corpóreos encontram correspondência (homonímia) com outros tantos sentidos espirituais, que podem ser desenvolvidos mediante exercícios adequados, todas as experiências ocorridas no mundo dos sentidos são transferidas para o nível dos sentidos do espírito, capacitando o desenvolvimento da visão espiritual (que permite ver realidades superiores às corpóreas), da audição espiritual (capaz de ouvir as “palavras inefáveis” (2Cor 12,2-4) e ainda a aprendizagem da Palavra sem o “véu da letra”, etc. (7.)
Leia-se o texto do Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão, no qual alguns tradutores e interpretes vêem uma simples relação conjugal e uma expressão lírica do mundo das sensações. O que revela, se soubermos descodificá-lo, é precisamente esta homonímia existente entre os sentidos físicos e espirituais.
A fase terminal da vida não é, portanto, um período destituído de sentido ou de conteúdo, nem tão-pouco o “fim definitivo da condição peregrina da pessoa”. É, antes, um pequeno segmento da espiral evolutiva do espírito e a preparação para nova aprendizagem no mundo físico. Todas as nossas atitudes futuras estarão, por esta razão, intimamente ligada às experiências anteriores, desde que essas não nos sejam roubadas.
“Morte roubada” será, então, aquela que é ministrada sem o conhecimento do doente, mas também a que é provocada a pedido do mesmo e racionalmente decidida(8.).
Como poderemos alterar esta ordem de ideias estéril e paralisadora? Nunca através de iniciativas transitórias, conducentes a acordos parciais e a diálogos pontuais com pessoas que, entrincheiradas nas suas instituições, persistem numa orientação conservadora da realidade espiritual. Com efeito, cada uma dessas pessoas entra e sai dessas instituições repetindo inalteradamente as mesmas afirmações, excepto em casos de interesse pessoal ou de submissão ao argumento da força. Será, pelo contrário, retirando consequência da referida coerência entre mundividência científica e espiritual que se podem citar evidências e invocar argumentos de modo a impor umas quantas interrogações capazes de abalar a solidez monolítica dessas crenças e “verdades” funcionais.
Mas, como se tem comprovado ao longo dos últimos decénios, este desiderato não é alcançável através de protocolos, de memorandos ou do trabalho aturado da burocracia. A dúvida, de que há-de nascer a luz, surge nos indivíduos e exercita-se no convívio humano alimentado pela simpatia e pela solidariedade.
O preconceito que deve ser vencido é o que nega a existência de um propósito na vida humana e que sustenta que ela é destituída de sentido — ou, pelo menos, de um sentido “suficiente” — sempre que não se identifique com a felicidade e o bem-estar.
É, ainda, o que entende que o processo da morte não possui valor para o espírito. Na realidade, o conteúdo dessa experiência exerce uma profunda influência em termos cognitivos e de ampliação futura do nível da consciência. À medida que esses conteúdos forem sendo assimilados pela consciência, os processos inconscientes são activados e a consciência é ampliada.
E como a nossa filosofia se insere na realidade humana, alterando gradualmente os processos cultural, progressivo e natural, eis a razão por que ela deve catalisar e apressar determinadas realizações, corrigindo desvios e orientando os processos cultural e progressivo para o sentido de construção do homem e do mundo contidos no seu ideal. Cabe-lhe, por isso mesmo, ajudar o homem contemporâneo a libertar-se daquela teia de crenças e superstições que o impedem de valorizar a vida analisando a dimensão espiritual. Reintroduzida esta dimensão nas nossas coordenadas culturais, e liberto o espírito do emaranhado de informações inexactas, torna-se claro que o procedimento mais adequado numa fase terminal é humanizá-la, garantindo a solidariedade e evitando a solidão. E, ao mesmo tempo, facilitando ao doente a vivência das suas convicções filosóficas ou religiosas e a satisfação das necessidades espirituais.
Claro que, para o prosseguimento de uma orientação deste tipo, é importante que não se verifique influência de orientações políticas, ideológicas ou correntes de pensamento que se substituam ao arbítrio dos doentes privados de faculdades mentais ou da possibilidade de as manifestar, com base no critério subjectivo da “qualidade de vida”(9.).
Tão importante como tratar a dor (e os progressos da Ciência parecem garantir que já não existem dores intratáveis) é não aceitar que a morte imposta venha a servir de pretexto para formas de “eutanásia económica”, suprimindo existências cujas vidas parecem não merecer serem vividas essencialmente para suavizar os gastos com a saúde (recém-nascidos com malformações, deficientes graves, idosos não auto-suficientes, etc.), tudo camuflado sob a capa de intenções humanitárias.
Quanto a nós, o que caracteriza a filosofia rosacruz é exactamente esta depuração permanente de crenças e preconceitos que se estruturam em mentalidades e tipos de discernimento, impedindo as pessoas de reagirem lucidamente sobretudo nos assuntos mais complexos da vida. Importa contribuir para a iluminação do que, nos seres e nas coisas, é “essencial” e “importante”.
F. M. C.
Notas
1. Walter Osswald, Sobre a Morte e o Morrer; Fundação F. M. dos Santos, 2013.
2. John Peter Kenny, A Visão Cristã do Além; Ed. São Paulo; Lxª, 1996.
3. Ian Stevenson, M. D., European Cases of the Reincarnation Type; McFarland & Company, Inc., Publ.; 2003
4. Ian Stevenson, M. D., Reincarnation and Biology — A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Births Defects: Reincarnation, Birthmarks, Abnormalities, etc. Vol, 1 e 2; Praeger Publishers, 1997.
5. Cf. A Reincarnação Através dos Tempos — Judaísmo e Cristianismo, in ROSACRUZ, nº 327, de Janeiro-Fevereiro-Março de 1993.
6. Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 4ª ed., Lxª, 2005, pp 215, 309.
7. Id., Mistérios Rosacruzes; Lxª 2004, pp 79-80.
8. Cf. Marie de Hennezel, Nós Não nos Despedimos, Casa das Letras, 2003.
9. Cf. F. C., Morte Esperada — Considerações Éticas sobre o “Excesso Terapêutico”, in ROSACRUZ, nº 385, Julho-Agosto-Setembro de 2007.