Mensagem de Reflexão para o mês de Junho

 
Quem anda descalço não deve semear espinhos.

Viagens Filosóficas ( 2018 )

 

A Virgem Negra da Nazaré

 

Admite-se que o cristianismo tenha chegado à Hispânia ainda na idade apostólica. Diz a tradição que Santiago Maior teria arribado a um porto da Bética (Algarve-Andaluzia) seguindo as rotas migratórias do Mediterrâneo. De facto, a cristianização da Lusitânia começou pelo Sul, proveniente do Norte de África. “As primeiras igrejas cristãs da Lusitânia obedeciam ao bispo de Cartago e não ao Papa, em Roma. As boas relações com Cartago eram devidas aos laços culturais com os imigrantes mediterrânicos que se fixaram no território lusitano” (1).

 

A Virgem da Nazaré

 http://www.rosacruz.pt/artigos/A_Virgem_Negra_da_Nazare/Virgem_da_Nazare.jpg

Nossa Senhora da Nazaré —  tem como precedente remoto o culto de Ísis

Depois de se ter consumado a organização eclesiástica que assegurou o êxito do cristianismo, e durante muito tempo, as populações rurais continuaram fiéis às suas velhas crenças. Por isso começou a usar-se a palavra pagão (em latim paganu, com o significado de “aldeão”) para designar os não-cristãos. 

Todavia, o cristianismo não conseguiu eliminar totalmente as religiões locais. Por isso, a solução mais apropriada foi a de assimilar as tradições, crenças e actividades religiosas e culturais precedentes, ao mesmo tempo que os cultos antigos se “convertiam” e adoptavam referências cristãs “para não caírem no conceito jurídico de crime” (2), como se comprova por uma carta do papa Gregório Magno, dos séculos VI-VII d. C., referida por Beda, o Venerável, no 30º capítulo do primeiro livro da sua Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, Liber Primus, onde se recomenda que os templos pagãos mais bem construídos sejam convertidos ao uso cristão (3).

Nasceu assim um sincretismo, ou dualidade religiosa, que tornou a nova religião de Estado uma religião de massas.
Decorria, nessa altura, uma acesa controvérsia teológica na tentativa de clarificar atitudes em relação a certas e grandes questões doutrinárias. No concílio de Éfeso, em 431, um dos resultados da ênfase posta no celibato na Igreja foi a insistência na virgindade perpétua de Maria. Para a glorificar, foi-lhe dado o título Theotokos: “Mãe de Deus”.
A mãe de Jesus passou a chamar-se “Mãe de Deus”, como Cíbele, considerada a mãe dos deuses, ou “Senhora do Pranto”, à semelhança de Adónis, o deus oriental da vegetação e do ciclo da semente que morre e ressuscita, que tinha celebrações fúnebres com procissões e prantos rituais de carpideiras. Ao mesmo tempo, os deuses locais fundiam-se com os santos cristãos, sob cujos nomes continuavam a ser venerados (4). Fizeram-se por isso coincidir com o calendário litúrgico os ritos populares regionais, quase sempre ligados ao calendário agrícola. Os espíritos da natureza — génios das águas, duendes, elfos e outros — esses conservaram os seus nomes, ainda que a Igreja os considerasse espíritos maus ou superstições.

Não houve, naturalmente, uma ruptura total com o passado, uma vez que o cristianismo não pôde subtrair-se à influência de alguns rituais desses antigos cultos da natureza, nem à nostalgia das divindades femininas e da adoração da maternidade. Alguns assumiram novas formas e padrões, de acordo com a época e tradição esotérica-espiritual em que ficaram inseridos e em que passam a operar. E, por isso, sobreviveram, como certos ritos etários que emergiram no mundo cristão na forma da comunhão solene e do crisma, ou o culto das imagens. Estas, inicialmente consideradas “idólatras”, desfrutavam de tal apreço em todo o Ocidente, que o clero, não podendo extirpar o seu culto, se resignou a “baptizá-las”.

É por isso que há Virgens Marias descobertas “milagrosamente”, que podem ter sido ligeiramente retocadas ou revestidas com outra indumentária, mas que são, na realidade, imagens de outros cultos que passaram a estar postos ao serviço da religião cristã (5).

A Virgem da Nazaré

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Nossa Senhora da Nazaré —  tem como precedente remoto o culto de Ísis

Esta imagem, que segundo a já referida tradição foi trazida por Frei Romano, obedece a quase todas as características fundamentais das Virgens Negras (6). Vejamos:
- Trata-se de esculturas em madeira, talhadas entre os séculos XI e XII;
- são Virgens de Majestade, isto é, estão sentadas no trono, têm o Menino ao colo e ostentam um aspecto oriental ou, segundo outros, uma expressão faraónica;
- as feições da Virgem são sempre mais cuidadas do que as do Menino, o que realça a sua importância;
- a face e as mãos estão pintadas de negro, em contraste com o vestuário, que é branco, encarnado ou azul (às vezes verde); as cores não são arbitrárias, mas escolhidas de acordo com o simbolismo da época (7);
- o tamanho comum é de 70 x 30 x 30 cm, numa proporção de 7 para 3;
- os santuários situam-se em locais muito frequentados e onde existiu um culto a uma divindade pagã desde a Antiguidade;
- os milagres estão associados à fecundidade, a navegantes em perigo, a doenças infantis, etc.;
- têm uma relação directa com a Ordem do Templo;
- há sempre um elemento oriental na sua lenda: escultura, pintura, origem, etc.;
- têm relação directa com a água: mar, fonte, rio, poço, etc.
No Santuário da Nazaré, a venerada imagem é de madeira de oliveira. Está colocada numa maquineta, por detrás e acima do altar-mor. Acede-se a ela por uma escadaria de ferro que há na sacristia (8).

Isis e a Virgem da Nazaré

Afigura-se evidente que o actual culto de Nossa Senhora da Nazaré tem, como precedente remoto, o culto de Ísis, que ali existia séculos antes de o cristianismo se implantar na região, precedendo o culto mariano, que, como já se disse, data do século XII, e o uso das imagens, que é posterior aos séculos XI-XII.
Como e evidente, parte do culto de Maria é o culminar do culto da Lua, que foi considerada uma potência divina com influência na fecundidade humana, animal e vegetal.
A relação entre a Lua, a procriação humana e as crianças é evidente em diversas tradições populares actuais.  
Foi S. Bernardo que inventou o vocábulo “Nossa Senhora” (9).

 

 

À esquerda: Ísis, Museu do Louvre, Paris
À direita: Virgem do Leite. “Mestre da Lourinhã”, séc. XVI, Casa-Museu Medeiros e Almeida, Lisboa

Encontra-se o tema da “Nossa Senhora do Leite” em alguns frescos do século II, nas catacumbas romanas. Durante a Contra-Reforma, quando se multiplicou a representação de seres divinos sob a forma de imagens, como reacção contra o protestantismo, a Virgem ficou também associada à Lua representando Nossa Senhora da Conceição (a que concebe e amamenta), com o quarto crescente lunar aos pés. Estas imagens ficaram conhecidas como “Virgens do Leite”.

A devoção a Nossa Senhora da Nazaré, que tem o cunho de uma população que vive de uma economia em que a pesca e a faina marítima têm lugar tão importante quanto arriscado, está de acordo com o culto da “Ísis dos Navegantes”, que abria oficialmente a época da faina piscatória. No tempo do Império Romano, este período iniciava--se em 5 de Março, precisamente sob os auspícios de Ísis.

Vamos concluir.
Não podemos considerar as religiões anteriores ao cristianismo como inferiores apenas porque o precederam. Não há, por isso, “um antes” e “um depois” de Cristo, um “absolutamente falso” e um “absolutamente verdadeiro”, como se afigura perceptível nos ensinamentos das várias confissões cristãs que, paradoxalmente — e na tentativa de assimilar esses cultos, costumes, crenças e rituais antigos — se converteram nos seus fiéis guardiães (10).

As imagens usadas nos antigos rituais, como os símbolos da mitologia, funcionavam como modelos para transmissão de conhecimentos e levaram sempre a sua mensagem ao espírito humano numa linha evolutiva contínua, mesmo que nele não houvesse consciência dessa realidade (11). Embora a crítica religiosa as considere superstição, tal não impede que se reconheça o “valor da persistente adopção pelas religiões novas (como o cristianismo), de costumes antigos do culto, para não ferir ou chocar demasiado os hábitos e aproveitar o já consagrado, tanto mais que, no fundo, é a mesma divindade única que é adorada, ainda que sob diferentes concepções, nomes, crenças, práticas e objectos, certamente muitos deles ilusórios ou ignorantes, mas muitos outros reveladores de conhecimentos subtis e saberes intuitivos ou capazes de serem salvíficos (12).

Mas estas representações populares, para uso dos fiéis, não dispensa uma interpretação mais intelectual, ou esotérica.

De facto, Theotokos não é apenas a mãe sublime, mas humana, de Jesus, que é venerada nestas figurações plásticas, estátuas, baixos-relevos, etc. É também a imagem da Sabedoria divina como expressão do pólo feminino de Deus, como se vê no texto de Sb 8, 1-9, em que a Sabedoria se manifesta como a mulher-esposa e mãe que comunica o conhecimento aos seus filhos. Em Prov 8, 23-25, Job 28, 12-27, etc., a Sabedoria aparece repetidamente como figura feminina com a função de mediadora na criação. Há, portanto, uma estreita relação entre a Sabedoria divina e a Mulher e até uma transmutação simbólica entre uma e outra (Pr 19, 14; 31, 10.26.30). Esta Sabedoria, que se comunica aos filhos, é o próprio Deus com traços femininos.

Theotokos é também a personificação do princípio feminino universal a que nós chamamos substância-raiz-cósmica, que acolheu, no momento da criação do mundo, a expressão do princípio masculino do Espírito Universal Absoluto, do que resultou que “tudo o que vemos à nossa volta, sejam elas formas minerais, vegetais, animais ou humanas, resulta dessa substância espiritual, a única existente na autora do nosso dia de manifestação” (13).

O culto das deusas-mãe é uma das primeiras manifestações do conceito humano de divindade. Com o tempo, elas acabaram por assumir um nome e uma imagem pessoal, antes de os deuses celestes e o deus-pai ocuparem o seu lugar. É um facto digno de nota que o “homem ‘civiliza’ o seu Deus e o modela à sua própria imagem” (14). Ou seja: as práticas religiosas são paralelas ao desenvolvimento da sociedade e fazem parte do acordar espiritual e do desenvolvimento da consciência humana.

Neste sentido, a figura da Virgem é uma daquelas imagens e símbolos que revelam uma estrutura do mundo que ainda não é evidente no plano da experiência imediata — mas que não suprime a realidade objectiva. Estas imagens e símbolos, ao proporcionarem a análise de relações extra-racionais entre os diferentes níveis da realidade e os mundos cósmico, divino e humano, servem de ponte para uma compreensão esotérica da realidade que só é possível com recurso ao órgão do espírito que é o intelecto e de acordo com certo nível de educação científica pessoal. São, por isso, formas de expressão e comunicação complementares à razão — e em caso algum se podem confundir com atitudes irracionais nascidas das emoções.

O cristianismo, tornado religião de Estado, deixou gradualmente de contar com indivíduos criteriosamente seleccionados através do catecumenato e das práticas iniciáticas para atender às multidões.

Este cristianismo de massas, que se tornou uma religião puramente masculina, perdeu assim a noção da dimensão feminina de Deus, permanecendo na mãe de Jesus apenas o conceito feminino.

 F. M. B. C.

 

(1) Moisés do Espírito Santo, Cinco Mil Anos…, pp 21-61.
(2) Id., Origens do Cristianismo Português, Universidade Nova de Lisboa; 2ª ed., 1993, p. 127.
(3) História Eclesiástica dos Povos Ingleses, https://la.wikisource.org/wiki/Historia_Ecclesiastica_gentis_Anglorum_ Liber_Primus#30; Fevereiro, 2019.
(4) Moisés do Espírito Santo, Origens do Cristianismo Português, pp 77, 127.
(5) Jean Merkale, A Grande Deusa — Mitos e Santuários; Instituto Piaget, Lisboa, 2000; p. 127.
(6) A imagem actual é um trabalho do século XIV ou XV devendo ser, por isso, réplica da original. Cf. Pedro Penteado, A Construção da Memória nos Centros de Peregrinação, in “Communio, Revista Interna-cional Católica”, 1997, nº 4.
(7) Thierry Wirth, Les Vierges Noirs — Symboles et Réalités; Oxus, Paris, 2009, pp 42-62.
(8) Maquineta: trono portátil junto à parede, com dossel e cobertura de tecidos variados.
(9) Thierry Wirth, ob. cit., p.137.
(10) Gabriela Morais, Lisboa Guarda Segredos Milenários, Santa Brígida, uma Deusa Celta no Lumiar, Apenas Livros, 2011.
(11) Max Heindel, Mistérios das Grandes Óperas, FRP, Lxª, 1997, pp 6-7.
(12) Desiderius Erasmus, Modo de Orar a Deus, Tradução de A. Pereira Mendes e P. Teixeira da Mota, 2008.
(13) Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; F. R. P., Lxª, 2005; pp 149-150.
(14) Id., Ob. cit.,  p. 289.

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