O Presépio Celeste
O nascimento de Jesus teve aquela simplicidade que encontramos em todos os momentos sublimes. Apesar do seu nascimento ser um marco tão importante que assinala o início da nossa era, não existe um só documento contemporâneo sobre ele. O povo judeu, que esperava a vinda de um Messias, passou completamente inacessível por este grande momento. O aristocrata José ben Matias (37 d. C. 100 d. C.), conhecido como Flávio Josefo, que escreveu duas grandes obras, A Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas, não lhe concede mais do que uma curta frase: “foi condenado pelo Procurador Pilatos, no tempo do reinado do Imperador Tibério”. Mais nada. E ambos os livros, em pelo menos algumas versões, contêm passos são claramente interpolações posteriores.
Presépio — Machado de Castro (1731-1822)
Representação figurativa, barroca, do mapa do céu no momento do nascimento de Jesus..
Foi o primeiro a incluir a adoração dos Reis Magos.
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Se o material histórico não abunda, temos de recorrer a outros testemunhos, mesmo quando tenham uma perspectiva crítica. Podem até servir para um confronto significativo.
A Palestina nunca tinha sido uma região calma. O ano 63 a. C., dois macabeus disputavam o trono. Um deles teve a ideia e pedir ajuda a Pompeu, e Jerusalém acabou por ficar sob domínio romano. Depois, César nomeia Herodes, um dos mais desembaraçados príncipes árabes, como governador da Palestina. António coloca-o no trono, mas Herodes nunca soube agradar ao povo judeu, que o considerava usurpador e pagão.
Houve quem se desesperasse com a passividade dos seus concidadãos e aconselhasse o caminho da resistência violenta contra os romanos. Ezequias foi um deles, Herodes mandou-o executar, logo no começo do seu reinado.
Outros, porém, dirigiam o olhar noutra direcção e através da luta actual vislumbravam as últimas fases. Eram os essénios. Constituíram uma Ordem, muito fechada, com regras precisas. Esta Ordem era constituída pelo que restava da Escola ou Fraternidade dos Profetas, fundada por Samuel. Dedicavam-se ao estudo profundo do esoterismo, dos mistérios da vida. Muitos essénios tinham capacidades proféticas, como Menahem, que vaticinou a Herodes que reinaria.
Conheciam a ligação íntima que existe entre tudo o que há no universo e as consequências que resultam da perda dessa harmonia. É bem conhecida a acção dos Terapeutas, o círculo externo da Ordem, que procurava restabelecer a harmonia nos enfermos e restituir-lhes a saúde.
Os essénios tinham a consciência de viver num período de transição, como o demonstram os seus escritos que, de resto têm uma íntima relação com o Novo Testamento, particularmente com os textos de S. Paulo e S. João.
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De acordo com a harmonia que preside a todas as coisas, a vinda do Messias teria de coincidir com certos fenómenos cósmicos e acontecer em determinado tempo e lugar. Ficou assim profetizado que sua vinda estaria relacionada com um aspecto celeste no qual se destacava uma tripla conjunção que envolveria os planetas Júpiter e Saturno o, na constelação dos Peixes.
As inscrições cuneiformes da Babilónia, onde funcionava a Escola Astrológica de Sippar, confirmam também esta previsão.
Os essénios não foram os únicos a pressentir os novos tempos. Ésquilo (525-456), o célebre dramaturgo grego, que podemos considerar o criador do teatro, era filho de um sacerdote de Elêusis. Quase pereceu nas mãos dos Atenienses, por se atrever a afirmar que o reinado de Júpiter-Destino terminaria em breve. Quatro séculos mais tarde, Virgílio (70-19), o poeta mais antigo e famoso da época de Augusto, também anunciava a nova era dizendo ter chegado o tempo predito pela sibila de Cumas, na Campânia (Itália).
Entre os próprios judeus, Maimónides, com toda a precisão que lhe é característica, dizia, em 117 d. C., que eles continuavam a aguardar o Messias e a relacionar tão importante a acontecimento com o aspecto celeste já referido. O desapontamento deve-se ter instalado no seio dos eruditos da comunidade judaica, quando Isaac Abrabanel (1437-1508), afirmou que o Messias, há tanto esperado, já tinha, sem dúvida, aparecido .
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O recurso aos modernos meios de cálculo permitem-nos determinar, cum uma pequeníssima marem de erro, de cerca de um minuto de longitude, as datas pré-cristãs em que se verificaram aqueles aspectos celestes.
Das poucas que existem, apenas uma nos interessa: a que se verificou a parir de 1 de Março do ano 6 a. C.. Nesse dia, verificou-se uma excepcional aglomeração de planetas na constelação dos Peixes. Júpiter e Saturno também lá estavam, e a conjunção perfeito ocorreu poucos dias depois, próximo da altura em que hoje se comemora a Anunciação. Além dos planetas mencionados o aspecto envolvia também o Sol, a Lua e Vénus.
A data em que se verificou este fenómeno celeste evidencia o grande erro histórico que dá o nascimento de Jesus como tendo ocorrido no primeiro ano da nossa era. O responsável foi o abade Dionísio, o Pequeno (522 d. C.) a quem se deve a introdução da cronologia cristã, que atrasou inadvertidamente a data. Jesus nasceu, portanto, 6 anos antes do que geralmente se pensa. Confirma-o a morte de Herodes, que é perfeitamente conhecida e que foi no ano 4 a. C., pelo que a natividade nunca poderia ter acontecido posteriormente. Se alguma dúvida pode subsistir, quanto à data é, porém, inegável que ela se situa entre os anos 6 e 4 a. C.
Devido ao intenso brilho da conjunção, a sua luz foi atribuída a uma “estrela”. Os reis magos (não se sabe quantos eram de facto, nem mesmo se eram três, como diz a lenda, mas apenas que eram magos, ou astrólogos), “seguiram” a estrela. A reconstrução do aspecto do céu em Nazaré na noite do primeiro Natal, ajuda-nos a compreender uma parte da simbologia cristã e o uso das figuras do presépio, que se transformaram num espelho do aspecto celeste daquela noite.
Antes, porém, devemos notar que a relação entre o nascimento de Jesus e a data do solstício de Inverno é notória. Todos os salvadores nascem perto deste momento, m que o Sol “nasce” para o Hemisfério Norte. No tempo do imperador Aureliano (270-275), foi instituída a adoração ao Sol. O significado simbólico não se perdeu. Ainda no século IV se celebrava a festividade do Sol da Justiça, ligado a este aspecto simbólico. A data do Natal (que foi comemorado em diferentes datas), fixou-se definitivamente em 337, pelo papa Júlio I, em 25 de Dezembro. Anteriormente comemorava-se numa data e que se confundia com os ritos pagãos das brumélias, em honra de Baco.
A data escolhida foi particularmente feliz. Permitiu enquadrar toda a simbologia cristã já em uso, com várias referências alegóricas a fenómenos celestes, com o aspecto do céu condizente.
No horizonte oriental ascendia a constelação da Virgem. A referência à imaculada concepção significa que Maria já tinha preparado o traje dourado de núpcias. Este rito está relacionado com os mais profundos mistérios da vida e muito pouco se pode dizer sobre ele, excepto que a humanidade inteira o poderá celebrar um dia.
Logo a seguir temos a constelação do Leão, o símbolo de Judá e do próprio Cristo. O leão é o animal mais referido nas escrituras, depois do cordeiro. Nesta constelação existem duas estrelas chamadas Aselii (burrinhos). Diz a lenda que representavam os burros montados por Baco e Vulcano nas suas lutas com os Titãs. O jumento é um dos animais que vemos em todos os presépios.
No zénite, sobre o local do nascimento, estava a constelação do Caranguejo. As suas quatro estrelas principais formam uma “cripta” ou gruta, na qual alguns autores cristãos e livros apócrifos afirmam ter nascido o Menino. Tanto a gruta como o estábulo são usados ainda hoje nos presépios. Depois, está a constelação dos Gémeos. Existem aqui duas estrelas, Castor e Pólux, que os antigos representavam com duas figuras humanas, duas crianças. Uma era portadora da lira de Apolo e a outra segurava a maça de Hércules. A primeira simboliza a luz do conhecimento espiritual, a força do entendimento e harmonia; a segunda simboliza a energia capaz de se traduzir em actos. Essa capacidade executiva pode realizar o que a sabedoria e a inteligência conceberam. Os Gémeos simbolizam, por isso, a total harmonia entre a acção e o conhecimento. Na antiga Suméria, dois mil anos antes de Cristo, foi escrito, em placas de argila, uma epopeia chamada Gilgames.
Narra precisamente o confronto entre o desenvolvimento mental e a espiritualidade de Kindu e a arrogância e apetites carnais de Gilgames que, por não suportar a ideia de existir um rival, se tornava despótico e tirânico. É nesta epopeia que se encontra a primeira descrição do Dilúvio, em termos muito semelhantes aos quelemos na Bíblia. A mitologia grega também reflecte uma profunda influência suméria.
A paz na terra apenas será alcançada quando entre os homens houver boa vontade de conhecer e, logo a seguir, boa vontade em agir de acordo com o conhecimento. Enquanto houver algo imposto do exterior, por meio do medo ou de qualquer outra forma de pressão, nunca poderá haver um autêntico processo educativo, que deve ter origem no íntimo de cada um para assim se tornar uma disciplina auto-aceite. Só por esta via nascerá uma alma que se imporá ao tipo humano, como este se impõe ao animal, e permitirá unir a cabeça e o coração. A mente e a razão devem fundir-se com o amor, no ajuste completo da personalidade, o que só é possível quando se conhece racionalmente aquilo que o coração, por si só, aceita cegamente, com todos s absurdos possíveis.
Temos agora a constelação do Touro, que também está incluído no presépio e depois surge o Carneiro (ou cordeiro) largamente representado. Finalmente, no horizonte ocidental, está a constelação dos Peixes. É um símbolo conhecido por muitas gerações de cristãos e identificado, a partir do século II, com o próprio Cristo. Há muitas explicações para o uso deste símbolo, todas mais ou menos fantasiosas. Recordemos apenas a de Roberto Mowat, que considera a palavra “peixe”, em grego Ichtus, como sendo o criptograma formado pelas iniciais de Iesoûs Christós Theoû Uiós Sotêr, o que se traduz por “Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador”. Todavia, esta explicação surge como hipótese, mais de duzentos anos depois do peixe ser usado como símbolo e não tem qualquer fundamento.
Na interpretação correcta destes símbolos não podemos esquecer que as figuras do touro e do bezerro foram aceites pelos sacerdotes para serem adoradas e objectos de culto.
Depois de o Sol ter entrado, por precessão, no signo do Carneiro, os cultos sofreram uma alteração e o cordeiro substituiu o touro como símbolo religioso.
Com a entrada do Sol na constelação dos Peixes, adoptou-se outro símbolo, o peixe. Cristo chamou aos discípulos pescadores de homens. Este símbolo já era vulgar no ano 100 a. C., e desapareceu depois de, em 312, Constantino ter tornado inútil o uso de símbolos para identificação.
F. M. C.
Revista Rosacruz nº 306, Outubro, Novembro e Dezembro de 1987
Nota: Os antigos, para observarem os astros e os seus movimentos, dividiram o céu em constelações. Deram-lhes o nome de “signos”. Com o movimento retrógrado dos equinócios alterou-se a correspondência. Hoje, os signos não correspondem às constelações.