FILOSOFIA

Bíblia "Descafeínada"

"A gente fala para se entender. E isto tem a estranha consequência de, às vezes, a gente falar para se desentender”, disse O. Lopes.

É que, para falar, se usam palavras. E como há no ser humano uma tendência para evitar as que se refiram directamente a assuntos desagradáveis, acontece que, quando uma palavra tem significado desagradável, pode ser rejeitada. Exprime-se então a mesma ideia por outra, isto é, por eufemismo.

É o caso de numerosas palavras e expressões relacionadas com a doença e a morte (esticar o pernil, arrumar as botas, etc., em vez de morrer).

Esta tendência acentua-se cada vez mais e começa a tornar-se moda. Hoje, por exemplo, já não há carecas. Há pessoas “com desvantagem capilar”. Os ignorantes também acabaram. Deram lugar a pessoas sem “conhecimentos básicos”. Até mesmo a linguagem das instituições oficiais se modificou. Basta ler o Diário da República. Os nomes das diversas categorias profissionais foi alterado, parecendo mudar consigo a categoria social dos empregados.

Esta moda não é apenas social. É também religiosa. Certas autoridades religiosas britânicas concluíram que muitas palavras bíblicas têm significado pejorativo, machista, classissista, sexista, racista, ou, simplesmente, menos elegante. E daí a publicar-se uma Bíblia com a nova linguagem da moda foi um passo1. Para não se ferirem susceptibilidades recorreu-se largamente aos eufemismos. Alguns exemplos: em vez de escravos fala-se de “pessoas submetidas” e os cegos são “pessoas que não vêem”. A cor negra já não é o símbolo do mal e eliminaram-se todas as alusões sexuais à divindade. Deus já não é o Pai, mas o Pai ou a Mãe indistintamente — para satisfação das feministas.

Está, de facto, a surgir uma linguagem nova. A palavra está a ser subvertida, despojada da significação original e substituída por outra, sem sentido. Lembram-se da linguagem dupla de Orwell?

Traduttore, traditore, diziam os latinos. Traduzir é já atraiçoar, de algum modo, o sentido original da palavra. E, se num livro tão complexo, como a Bíblia, que não é “um livro aberto”, já mutilado pelas sucessivas versões, traduções, interpolações, supressões, etc.2 se juntar agora esta ânsia de seguir a moda, o que restará? Alguém dizia que, quando estão vazias as palavras, tal como os sacos, não se têm de pé. Não se têm de pé também quando estão atafulhadas de sentidos contraditórios. Só servem para se lhes bater, como se bate num saco cheio de areia.


1 Editada por Oxford University Press.

2 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 2ª ed., 1989, pág. 251-254.


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