ARTES E LETRAS

O Julgamento do Coração
versus
O Julgamento da Mente

Estudo esotérico de O Mercador de Veneza
de W. Shakespeare

 

Todas as grandes obras de arte incorporam uma estrutura interna e outra externa. Sob a capa desta última, e animando-a, subjaz a ideia viva. Sendo assim, a história literal — a trama — é uma coisa; o seu significado espiritual, outra. Sabemos bem que isto é verdade nos que diz respeito às alegorias, às fábulas e a todas as formas de literatura com elas relacionadas. Também que não ignoramos que é válido para a Bíblia e para os textos sagrados de outras religiões. Mas nem sempre estamos tão prontos a admitir que o mesmo princípio se aplica á totalidade das obras de arte que contêm em si o elemento da grandeza. No entanto, é precisamente esse facto que faz delas grandes e que lhes confere o atributo da imortalidade.

Abordemos nesta perspectiva o estado d’O Mercador de Veneza. Procuremos a intenção que subjaz à forma. Verificaremos então que a ideia funciona como o íman em torno do qual as personagens e os lances dramáticos se aglutinam formando um padrão que se desenvolve ao longo de certas linhas determinadas pela própria ideia dominante, da mesma forma que os átomos de um elemento químico se organizam invariavelmente segundo a padrão arquetípico a que obedecem.

N’O Mercador de Veneza, a ideia criativa central pode ser definida como o julgamento do coração. Este constitui o tema esotérico da peça, razão pela qual lhe são atribuídos múltiplos e variados desenvolvimentos ao longo de todo o drama. Na cena do Julgamento este princípio atinge a sua expressão mais forte e realista, e na dos Cofres a sua suprema configuração poética. Já no edílio de Jessica e Lourenço ele é tratado em termos de trama sentimental, enquanto Lancelote Gobbo discursa com o seu truculento bom humor. Na cena do Tribunal, o julgamento do coração é apresentado sob a forma de uma absolvição; nas do Cofre, como uma discriminação; nas perplexidade de Lancelote Gobbo como consciência. Quanto às vertentes raciais, são analisadas através da crise que sobrevem entre judeus e gentios, ao passo que as suas implicações religiosas têm o devido tratamento no conflito entre a Lei de Moisés e a Lei de Cristo. O tema tratado é, assim, ampla e consistentemente desenvolvido.

O julgamento do coração é superior ao julgamento da mente. Transcende a sua lógica. Como disse o célebre filósofo francês Pascal, “O coração tem razões que a razão desconhece” E o um pensador oriental colocou a mesma verdade em termos paradoxais ao afirmar “A razão que pode ser racionalizada não é a razão mais elevada”.

O julgamento do coração é uma manifestação do aspecto da Divindade que se prende com a sabedoria através do amor, sabedoria essa que na Trindade encontra a sua expressão em Cristo, e que no homem, cujo espírito triuno é a imagem do seu Criador, se manifesta nos correspondentes atributos de altruísmo e intuição. Estamos perante o princípio activo do amor, relacionado com o reino da consciência de Cristo, que na terminologia rosacruciana se designa pôr Mundo do Espírito de Vida e que a Teosofia chama Plano Búdico. É o julgamento daquele que sabe interiormente, em contraste com o dos que apenas apreciam a face externa da realidade.

A fim de revelar com inteira clareza e sem sombra de erro a verdadeira natureza deste julgamento, Shakespeare favorece-o sempre que o compara com os julgamentos da mente. O dramaturgo apresenta personagens nas quais predomina um ou outro e desenvolve situações que põem em evidência as suas doses relativas de verdade. Demonstra, através deste método, a superioridade do julgamento do coração sobre o julgamento da mente, e apresenta-o como o mais adequado às circunstâncias da vida e o mais eficaz nos momentos de crise da alma.


O aspecto Racial

N’O Mercador de Veneza, as personagens de António e Shylock representam, respectivamente, o julgamento coração e o julgamento da mente. Trata-se de personagens simbólicos, que transportam traços característicos dos grupos a que pertencem. O seu conflito não é, pois, meramente pessoal, mas também racial e religioso. Conforme observa Ludwig Lewisohn, “problemas constante e aprofundadamente enraizados conferem a esta fábula um significado que não se esgota nela própria”.

Quanto mais elevado é o nível a que o artista cria, mais longe alcança a sua vista. A partir dos planos arquetípicos, o alcance de uma ideia não se esgota na esfera limitada deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela localidade, deste ou daquele período histórico, atingindo, pelo contrário o extenso universo das raças, das eras e dos movimentos evolutivos. Shakespeare trabalhava num destes locais elevados, e daí a abrangência e a universalidade das suas criações literárias.

Cada raça possui determinadas características que a distinguem das outras. Passa-se isto, por inerência, com as raças semita e ariana. Essas qualidades distintivas podem ser detectadas desde há muito na evolução racial. Recuam aos semitas originais foram os pioneiros atlantes; constituíram a semente da raça ariana que sucedeu à atlante. Neste sentido, trata-se do povo Eleito por Deus — eleito pela sua capacidade de fundar um novo estádio de evolução humana e de desenvolver novas faculdades adequadas a uma mais perfeita expressão do espírito que nos habita.

Para desempenharem com êxito a sua missão contaram com o apoio de Javé, o seu Deus de raça. Foram mantidos àparte e proibidos de contrairem matrimónio com os seus vizinhos menos desenvolvidos e de pele mais escura. Alguns, porém, desobedeceram ao plano de Javé. Os que se misturaram e casaram com outros atlantes vieram a ser os antepassados dos judeus actuais. Do ponto de vista racial , estão entre os arianos e os mongóis; não pertencendo nem a um nem a outro destes grupos; são uma anomalia racial.

A razão, que é a faculdade que importa desenvolver durante o presente ciclo racial ariano, é uma faculdade da mente abstracta. O seu desenvolvimento tende a emancipar progressivamente a mente da escravidão do desejo e torná-la em correspondente medida submissa às solicitações do espírito. Pelas razões já expostas, esta faculdade abstracta desenvolveu-se mais nos arianos do que nos semitas. É o menor desenvolvimento desta faculdade abstracta no judeu que explica a sua faceta manhosa, reflexo inferior da razão. Por outro lado, sendo a mente abstracta dos semitas menos desenvolvida que a dos arianos, a sua mente concreta é mais activa. Julgam, por isso, mais com base na mente do que no coração. Estamos perante uma diferença racial fundamental.

Escusado será dizer que existem excepções individuais a esta generalização. É certo que poucas mentes arianas actuais — se é que existe alguma — serão capazes de igualar, e menos ainda de exceder, a capacidade de pensamento abstracto demostrada, por exemplo, pelo falecido Albert Einstein. A Bíblia ariana é um produto da mente e do coração hebraicos, e os arianos (Cristãos e não Cristãos) estão de acordo em que o mundo não produziu nenhum outro julgamento do coração dotado da divina qualidade daquele que é apanágio da suprema florescência da raça hebreia: o Mestre Jesus.

Procedamos a um leve resumo dos factos acima expostos. Quanto maior é o contacto com os níveis elevados ou abstractos do pensamento, maior é a manifestação das faculdades intuitivas e da sua expressão corrente — o julgamento do coração. Sempre que a intuição funciona, a razão é iluminada pelo espírito; quando esta está ausente, a razão verga ao desejo pessoal. No primeiro caso, a acção racional coincide com os imperativos ideais; no segundo, os ardis conduzem a objectivos egoístas e destituídos de princípios.

À luz do que ficou dito, observemos os retratos simbólicos de António e de Shylock. António é aberto, franco, honesto e directo; Shylock é reservado, fingidor, manhoso e tergiversador. Shylock odeia António1, mas finge ter-lhe amizade; António manifesta a Shylock o desagrado que este lhe inspira. Shylock actua com a mira do lucro. A desonestidade2 de seu pai Jacob, que lhe permitiu apoderar-se de mais ovelhas do que aquelas a que tinha direito, serve de guia a Shylock no capítulo da ética negocial. A prática de Jacob, diz ele, “era um modo de ganhar, e o lucro é um dom do Céu quando a gente não rouba”. Shylock propõe a António um pacto através do qual aspira secretamente à morte deste3, uma vez que “se não fosse ele, eu faria em Veneza todo o comércio que quisesse”. Propõe esse pacto “com todo o desportivismo”. Sem de nada suspeitar, António assina-o de boa fé.

António é simpático, generoso, magnânimo. “Oh, quem me dera um epíteto à altura do seu nome”, diz, a seu respeito, Salânio. Emprestava dinheiro sem juros4. Salvou muitos que eram constantemente assediados pelos credores. Era, na palavras de Bassânio,

“o homem mais efectuoso, a mais generoso alma e a mais infatigável emprestar serviços, a personalidade na qual em mais que nenhuma outra que viva na Itália aparece a antiga honra romana”.5

António admira de Bassânio e assegura-lhe que “a minha bolsa, a minha pessoa, e até os meus últimos recursos ficam à vossa disposição”. Quanto à sua magnanimidade, transparece claramente no final do julgamento, quando exige do adversário derrotado uma reparação inferior aquela que a lei permite.


T. Heline

in Shakespear's The Merchant of Venice

Trad. de L.A.M.

1, 2 Shakespeare, O Mercador de Veneza , pág. 35. Esta, como todas as citações que se seguem, são extraídas da versão portuguesa d’ O Mercador de Veneza revista por João Grave (Lello & Irmão - Editores, Porto, s/d)

3 Ob. cit. pág. 41

4 Ob. cit., pág. 35

5 Ob. cit., pág.115


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