Editorial
Anatomia da Violência
Todos sentimos o aumento da violência. Nos últimos anos tem sido quase vertiginoso. Não são apenas as guerras, principalmente as do Médio Oriente. Não é apenas o terrorismo, armado ou ideológico, que tende a propagar-se e açoita, como um flagelo, pessoas anónimas. Nem são apenas os raptos de crianças, no que representam de barbarismo insólito. São todas as estruturas de injustiça e de desprezo pela dignidade dos homens, que deixam de revelar primitivismo para se manifestarem como perversão ligada à patologia os instintos e dos sentimentos.
Decerto outras épocas igualmente conturbadas nos oferecem cenas de ódio e de vingança, de opressão e de rancor, onde se exibe e campeia a violência. Mas o que parece distinguir a nossa época, relativamente ao passado, é que a violência atingiu os espíritos neles se instalando. Larga e profundamente.
Ao reflexionar sobre o assunto, o cidadão lúcido, o crente convicto, magoado e provocado por um ambiente de violência que lhe parece catastrófico, desgastante, incompreensível, sucedendo-se a ritmo alucinante, pergunta: acaso a espécie humana, no seu conjunto, é, em si mesma, violenta e portanto desinserida do sistema de equilíbrio natural? Será a violência e a guerra uma instituição naturalmente humana? Ou, pelo contrário, é uma afecção social que não decorre necessariamente da natureza humana? Como tem sido possível que a espécie humana tenha usado de tanta violência e não seja freada por mecanismos inibidores ou conciliadores? Poderemos explicar a violência com base no choque entre valores morais (os bons e os maus), ideológicos (afrontamento de dois sistemas ou padrões de vida ou mentalidades) ou históricos?
O desfiar destas perguntas conduz à resposta dramática de que, tendo mudado quase tudo ao longo dos séculos, não mudou o causador das guerras: o homem social, integrado num determinado sistema económico-cultural. A origem da violência está, portanto, desde sempre, no homem.
Então, porque é que tendo mudado tudo, o meio envolvente, técnico e científico, material e social, hierarquias, dirigentes políticos, motivações e até o teor das justificações, se mantêm as guerras?
A resposta costuma surgir demasiado rápida e fácil: se fossem outros os homens que orientam a política, o mundo encontraria uma solução pacífica para os seus problemas.
Mas isto pressupõe igualmente que fossem outras as pessoas que constituem a maioria que os elege ou suporta, do que resulta que a raiz do problema está na composição actual da humanidade e é nela que reside, basicamente, a origem da violência.
Assim, é dado por assente que ninguém está isento de culpa. A violência é simples corolário de todas as insanidades que estruturam as sociedades contemporâneas. Há um germe nefasto, que infecciona o equipamento instintivo e afectivo humano e se revela como expressão de ordem cultural. Torna o homem de todos os quadrantes geográficos e políticos numa espécie de fera que age impensadamente. É a menoridade espiritual.
Sabemos que o homem é produto da evolução e, pela sua actividade, um agente da evolução: da sua própria evolução e da evolução do mundo a que tem acesso e sobre que exerce qualquer forma e influência. A evolução que o homem tem de imprimir a ele próprio não passa, nesta ordem de ideias, de um caso particular da evolução em geral, de que ele participa como ser natural que é.
Ora, à filosofia rosacruz compete, em primeiro lugar, iluminar as relações entre a cultura, o progresso e a evolução, permitindo a compreensão integral do homem em todos os seus níveis. Só a compreensão do homem-em-evolução, integrada numa visão evolutiva do próprio universo, permite ter consciência do carácter das causas da violência.
Como a filosofia rosacruz deve inserir-se cada vez mais na realidade quotidiana e humana, alterando o curso da evolução para formas mais evoluídas através do processo cultural, progressivo e natural, é assunto que nos deve merecer a mais cuidada atenção. O que é certo desde já é que o lugar a desempenhar pela filosofia rosacruz nos próximos decénios, no conjunto desta grandiosa transformação, terá de ser, sempre, o de uma vigilante ponderação do desenvolvimento daquele processo.
O nosso contributo para ajudar a desmistificar a milenar lógica da violência e ajudar a compreender a lógica da evolução passa por uma intervenção esclarecedora das três fases do desenvolvimento da violência colectiva. Cada uma delas é um centro determinativo da actividade humana e corresponde-lhe um tipo psicológico característico. A fase tribal tinha o centro determinativo nos impulsos emocionais e na vingança tribal. Na fase imperial a violência fundamenta-se nas guerras de conquista e de alargamento territorial. Por fim, com o advento da era industrial, ressurge a modalidade de guerra “santa”, baseada no mito da libertação. Tem carácter nitidamente paranóico e serve para transferir, para supostos inimigos, a responsabilidade pelos sentimentos de insegurança e impotência.
Mas a observação cuidadosa permite-nos vislumbrar o tímido balbuceio de uma cultura espiritual mais racional, que será o centro determinante de uma nova aptidão para a reconquista do equilíbrio e do conhecimento perdido.
Nesta ordem de ideias, as guerras são conflitos da humanidade com a realidade natural. São, portanto, anti-naturais. A paz, por seu lado, será a (re)integração do homem na realidade universal e cósmica, activa e consciente.
Descortinada assim a nossa missão, que é a de ajudar o auto-esclarecimento e a sua manifestação objectiva, tornando cada um consciente do destino do espírito adentro da evolução cósmica, resta-nos incentivar cada vez mais a nossa actividade iluminadora da realidade. Mas nesta actividade de tentar restituir o homem à sua a integridade é o exemplo deve ser dominante: “os exemplos arrastam e as palavras voam”.
F.M.C.
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