Filosofia

A Metáfora do Deus Encarnado

VIII - A Encarnação


(Conclusão)

Diz Max Heindel que, “em Deus, existem seres inferiores de todos os graus de inteligência e estados de consciência, desde a omnisciência até à inconsciência mais profunda ainda que a de transe”1. A divindade é pessoas. E o exame do discurso metafórico da videira e dos seus ramos, em Jo 15, 1 ss, revela com toda a clareza que há uma incorporação de todos estes seres na substancialidade divina. Esta incorporação acontece através de Cristo, cepa da Videira da qual nós somos os ramos.

É na reflexão destes ensinamentos que podemos compreender a dinâmica da intervenção de Cristo no desenvolvimento humano.

Para esclarecimento, mais profundo ainda, do nosso estudo, devemos ter em conta que todo o processo da natureza e da história deve ser visto não só em termos de hominização, mas também de cristificação. Durante a hominização, o homem evolucionou guiado por diversas hierarquias espirituais. A fase seguinte, da cristificação, é tarefa de cada pessoa. O processo de cristificação é profundamente dinâmico. Cristificar-se é crescer espiritualmente livre, responsável, consciente. Ninguém pode ser substituído nesta realização. Substituir uma pessoa é impedi-la de se realizar.

 

A Encarnação

A divindade é pessoas; a humanidade também. Como é em cima, é em baixo. O Homem foi criado à Sua imagem e semelhança (Gén 1, 27). Isto quer dizer que a humanidade é proporcional, mas não igual, à divindade. Há, por isso, compatibilidade, isto é, possibilidade de interacção e comunhão entre a divindade e o homem.

Compreende-se melhor esta lei da interacção relacional se nos lembrarmos do que ficou dito anteriormente: “a humanidade iniciou a sua peregrinação histórica como multidão e não como uma criatura inicial”2. A humanidade é plural. Mas o pluralismo genético assenta numa unidade evolutiva: a onda de vida humana. Por isso, a humanidade também é una. Isto implica que a interioridade humana seja uma estrutura relacional. A pessoa humana só pode realizar-se e crescer agindo, isto é, servindo. A plenitude da pessoa humana não está em si: encontra-se na reciprocidade da comunhão com os outros. Sem relações de serviço com os demais o homem não se personaliza nem cresce espiritualmente. Ao estabelecer uma dinâmica relacional de reciprocidade comunitária alimenta o núcleo de interioridade personalizável. A este núcleo chamamos “cristo interno”3.

O conjunto das experiências relacionalmente vividas com os outros é arquivada no corpo vital. Torna-se uma força que nos possibilita uma vida feliz ou, pelo contrário, nos amargura a existência. A consciência humana, obscurecida pela troca de faculdades espirituais pelas aptidões físicas necessárias para funcionar no Mundo Físico4, vai-se construindo através destes processos relacionais dentro de contextos sócios-culturais diversos.

A consciência humana não é apenas uma percepção individual. É uma componente da mente mas não é algo fechado dentro de uma pura subjectividade. A pura subjectividade situa-se unicamente ao nível bio-psíquico e psicossocial. A consciência humana é uma instância relacional. Manifesta-se pela capacidade de captar, ordenar, integrar e responder à informação proveniente do mundo interior, exterior e de outros indivíduos. “Inclui os fenómenos psíquicos conhecidos e também os que se denominam parapsicológicos”5.

Ao crescer em interioridade pessoal-espiritual o homem transcende a biosfera e penetra na esfera da comunhão universal. Quanto mais cresce em interioridade pessoal-espiritual, maior é a interacção do ego, consciente e directa, com a interioridade divina do Logos. Esta interacção não significa colagem, mas assunção e potenciação. Quando esta dinâmica relacional atinge intensidade adequada, o centro de todo o nosso ser é abrangido pelo centro de todo o ser; e o centro de todo o ser situa-se no centro do nosso ser. Quer isto dizer que é no interior da consciência humana, e segundo os matizes que ela vai adquirindo ao longo do processo estruturante, que o Cristo encontra campo para ecoar.

Jesus é a pessoa em quem as possibilidades divinas existentes no homem chegaram ao seu mais cabal desenvolvimento. Ele é o fruto mais amadurecido da nossa humanidade. O seu desenvolvimento pessoal-espiritual possibilitou a interacção directa com a interioridade divina do Logos. Nele encontramos a completa união com Cristo, sujeito às vicissitudes e tentações da existência humana, mas vencendo-as sempre pela sua fidelidade.

Jesus evolucionou ao longo de vidas diversas, em circunstâncias distintas, com vários nomes6. Por isso, “o seu Espírito de Vida estava bem organizado”7.

O corpo vital é gerado no Espírito de Vida e assenta no corpo físico em dois pontos: o coração e o corpo pituitário, que são as veias do nosso ser espiritual por onde circula a água viva que faz jorrar a vida eterna (Jo 4, 14; 7, 37).

Max Heindel alerta-nos para a importância deste veículo: “a verdadeira espiritualidade apoia-se no corpo vital, que é o veículo da razão”8. Este corpo é o vínculo da interacção e da incorporação orgânica do homem em Cristo. A sua compatibilidade com o Espírito de Vida, que é o veículo inferior de Cristo9, permite que se constitua plenamente a relação eu-tu entre Cristo e Jesus e que ela se torne uma participação consciente entre ambos. Esta abertura relacional permite que o “raio” de Cristo – para usar a expressão de Max Heindel – se polarize no corpo pituitário e no coração, o assento, primário e secundário, do Espírito de Vida10,11 deJesus, sendo por aí que a sua interioridade humana é assumida, potenciada e dinamizada no princípio da comunhão consciente com Cristo.

Esta relação permite estabelecer um fluxo cognitivo bidirecional entre as duas mentes, pelo menos em parte e intermitentemente. Isto equivale a dizer que Jesus tinha consciência de ser uma entidade percebida pela consciência mais vasta e inclusiva de Cristo. De facto, Jesus não tinha apenas uma consciência cognitiva mas, como se reflecte nos evangelhos sinópticos, possuía também uma consciência volitiva. O Nazareno estava, portanto, perfeitamente consciente da realidade e da presença de Cristo, mas sempre numa relação positiva e activa. Foi esta dinâmica relacional no interior da vida pessoal-espiritual de Jesus que permitiu a Cristo exprimir-se em grandeza humana e dispor de uma série completa de veículos12.

A “encarnação” deve ser entendida como uma abertura, uma possibilidade de encontro que o homem oferece a Cristo, mais do que um movimento de Cristo ao encontro do homem. Não implica movimento no espaço. Pelo acontecimento da “encarnação” o Universo não ficou reduzido da presença de Cristo. Nas coordenadas do Mundo do Espírito de Vida não há aqui ou acolá. Cristo está aqui e acolá. A “encarnação” acontece como interacção directa entre a interioridade pessoal humana de Jesus e a divina do Logos solar em dois movimentos complementares: o despertar do Logos solar no humano e a potenciação, plenificação e incorporação do humano no Logos.

Esta interacção, directa e permanente, faz-se a um nível supra-biológico. Cristo é a máxima interioridade do sistema solar. Atinge o homem a partir de dentro. Cristo não precisa de vir de fora para se meter dentro do homem. Não se localiza nem se detém em nenhum ponto do espaço do sistema solar. É transcendente. A transcendência não consiste em empreendimentos para além do nosso alcance e poder: alcança-se através do tu mais próximo de nós. Jesus deu o exemplo. Ele é “o homem para os outros”. Esta vida para os outros é a porta da transcendência. A transcendência não é distanciamento para cima – é presença interior. É isto o que diz o evangelho de S. João. Com a sua linguagem profundamente influenciada pela cultura hebraica, diz que o Logos se fez carne (Jo 1, 14)13. Ora, segundo o conceito bíblico, a carne é o homem como interioridade relacional interligado a todos os homens. Fazer-se carne, do ponto de vista da cultura hebraica da época, é entrar na grandeza relacional da onda de vida humana. Foi esta dinâmica que alterou o tecido relacional humano e permitiu que Jesus fosse o mediador entre Cristo e os homens (1 Tim 2, 5). Existe apenas uma humanidade. A Bíblia afirma a unidade da espécie humana ao relacionar todos os homens com Adão: Adão é a Humanidade. A unidade que existe entre todos os seres humanos é do tipo orgânico (1Cor 10, 17, 12, 27). Jesus pertence à nossa humanidade. É pela mediação pioneira de Jesus que a humanidade é incorporada mais depressa na reciprocidade de Cristo. Por isso, Cristo pôde sentir, como nenhuma outra entidade, tão elevada compaixão pela humanidade14.

 

Conclusão

Eis-nos chegado ao fim da nossa tarefa.

Afirmará o cristianismo que Cristo se transformou num ser humano pelo período de trinta anos? Ou que Cristo “entrou” no corpo de um homem? Será esse o sentido das palavras “e se fez homem”?

A doutrina cristã não pode fazer nenhuma dessas afirmações. São conceitos errados. Cristo não se transforma – e seria grotesco sugerir que a encarnação tem qualquer coisa de comum com as antigas metamorfoses da mitologia grega.

A biologização da encarnação, como pretende a teologia eclesiástica, é uma visão grotesca da realidade. Não é bíblica. Identifica-se claramente nela a influência da mitologia helénica. É uma visão descaradamente mitológica, pensada em termos de um universo de andares com Deus “lá em cima” e fora da natureza. Mesmo que se purifique esta construção, grosseira e literal, o que fica é ainda uma imagem mitológica da realidade. Por trás das frases como “Deus desceu do Céu”, ou “Deus enviou o seu filho unigénito”, esconde-se uma visão que representa Deus como uma pessoa que vive fora do mundo e apenas se distingue dos deuses pagãos pelo facto de afirmar que “não há deus além de mim”.

Esta visão deve ser ultrapassada com a mesma coragem que S. Paulo teve para se desembaraçar da circuncisão como requisito para admissão no cristianismo. É preciso aceitar a realidade como um facto sem dar relevo ao ataque da apologética, insubsistente e extemporâneo, acristão até, por se afigurar uma tentativa de fazer regressar o homem à antiga adolescência espiritual.

Também não se pode dizer que “encarnação” signifique que Cristo se meteu no corpo de Jesus, num acto mecânico-mágico, à maneira dos antigos oráculos, como pretendem os revivalistas da “Nova Era”. Nem sequer podemos falar de um acto, no sentido de fazer as coisas ou levar à acção, como se Jesus estivesse ligado a dois centros de consciência.

Não se pode sacrificar a pessoalidade de humana de Jesus para defender a unidade humano-divina de Cristo. A unidade orgânica de Cristo-Jesus não significa unicidade pessoal.

A intervenção especial de Cristo situa-se ao nível de uma presença dialogante. Na sua intervenção, Cristo não age pela lei, impondo-Se de fora, como os guias da humanidade no período da hominização, mas pela liberdade (2 Cor 3, 17). Não se impõe nem intervém sem que tomemos parte na nossa própria actuação. Foi na interioridade pessoal-espiritual de Jesus que a sua presença se tornou dialogante, interpelativa e iluminante. Com efeito, os seres humanos, ao serem integrados na divindade, não são anulados ou mutilados da sua realidade humana. É o que diz o Conceito Rosacruz do Cosmo: “no final do Período de Vulcano, os espíritos virginais submergir-se-ão em Deus, de Quem vieram, para, ao alvorecer de outro grande dia, reemergirem como Seus gloriosos colaboradores”. Quer dizer, os seres humanos são optimizados na sua condição de pessoas e incorporados na comunhão orgânica divina15.

É o que há-de acontecer connosco no momento em que a nossa emergência pessoal permitir a convergência divina. A lei da evolução é esta: emergência pessoal em convergência divina.

Francisco Coelho

 

Notas

1 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; F.R.P., Lxª 2005; p. 147.
2 F. C., Metáfora do Deus Encarnado - III, in “Revista Rosacruz”, nº 378, Outubro, Novembro e Dezembro de 2005; p. 23.
3 Max Heindel, O Véu do Destino, F.R.P., Lxª 1996; pp 15-17.
4 Id, Conceito Rosacruz do Cosmo; F.R.P., Lxª 2005; pp 172, 239.
5 Mário Simões, Aquém e Além do Cérebro, in “Actas do 1º Simpósio da Fundação Bial”; Porto, 1996; pp 109-125.
6 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; F.R.P., Lxª 2005, p. 297.
7 Id., Ob. Cit., pp 300-301.
8 Max Heindel, O Véu do Destino, F. R. P., Lxª, 1996; p. 16.
9 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; F.R.P., Lxª 2005; p. 297.
10 Id. Ob. Cit.; pp 312-313.
11 Francisco Marques Rodrigues, Deus, Cristo, Jesus. Trabalho não publicado. S/d. Arquivo da Fraternidade Rosacruz de Portugal.
12 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; F.R.P., Lxª 2005; p. 301.
13 Id., Ob. cit., p. 143.
14 Id., Ob. cit., p. 301.
15 Id., Ob. Cit., p. 337.




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