O QUE A BÍBLIA NOS ENSINA
A Reencarnação na Bíblia
Palavras-chave : Palingenesia – Reencarnação – Ressurreição
Introdução
A religião grega é, à primeira vista, um conjunto incoerente de fábulas e grosseiras ficções. Mas seria possível que uma religião com estas características tivesse dado origem a obras de arte que revelam exactamente o desejo de libertar o espírito de tudo o que os prende à terra? O conflito é evidente, e só pode ser resolvido por um exame atento do que foi a religião grega. Os próprios gregos sentiram a necessidade de uma explicação mais profunda. E uma das que obteve maior número de adeptos foi a que via, nos mitos divinos, simples alegorias com a finalidade de forjar a mente e o corpo daquela gente.
Na Grécia lendária, ao contrário do que vemos acontecer nos países do Oriente, o interesse pela reincarnação ficou limitado aos círculos iniciáticos. Só o identificamos por meio de alguns mitos como, por exemplo, o de Perséfone (onde se identifica o corpo – Perséfone – filho de Deméter – o espírito – que voltava periodicamente à Terra, renascia no mundo físico e tinha continuidade vital), ou o de Castor e Polux 1 .
É possível que, nos mistérios de Elêusis, se ministrassem aos iniciados uma doutrina que incluísse, sem imagens míticas, os grandes princípios da sabedoria oculta, que consistiam na unidade de Deus, na imortalidade do espírito e na lei da reincarnação associada à de causa e efeito 2 . Mas na Época helénica torna-se um assunto de muitas obras de reputados autores. Platão defende a tese da passagem do espírito pelo Hades, donde volta a reincarnar. No Fédon, defende a ideia da imortalidade 3 ; e no Fedro expõe a sua teoria da evolução do espírito 4 . Não é exagero ver no pensamento platónico o prenúncio da Civitate Dei de S. Agostinho.
E, no que diz respeito à Bíblia Hebraica, o Antigo Testamento, admite-se, de modo geral, a inexistência de qualquer afirmação que permita reconhecer, nos textos, a esperança de vida depois da morte. Diz-se até que, neles, o mais evidente é a confiança no poder de Deus sobre a morte e não o conceito de alguma coisa imortal que o homem tenha. É claro que a leitura atenta dificilmente apoia tal ponto de vista. Trata-se de uma interpretação literal. Baseia-se numa leitura "fundamentalista", que parte do princípio de que a Bíblia, sendo a palavra de Deus, inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus pormenores. Por interpretação literal entende-se uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo qualquer esforço de compreensão que tenha que ver com o seu crescimento histórico e o seu desenvolvimento. Bastará citar o episódio descrito em 1 Sm 28, em que a médium de Endor invocou o espírito de Samuel a pedido de Saúl, para se provar que o problema da sobrevivência do espírito não era assunto de todo indiferente aos autores veterotestamentários, ainda que o não refiram explicitamente. A Escritura propõe-se revelar verdades intelectuais, e não tanto repetir conceitos que eram, no tempo, do conhecimento geral, como é o caso da reincarnação – é preciso não esquecer que a doutrina da reincarnação só foi rejeitada pela Igreja no ano de 553, quando se realizou o II Concílio de Constantinopla. E, além disso, havia no judaísmo um ensinamento, que apenas se transmitia oralmente e era destinado a um público restrito, com a proibição de o divulgar a estranhos. Ainda que o Antigo Testamento pareça, de facto, não estar disposto a abandonar a ideia de que os actos e palavras de Javé são manifestações que se realizam diante dos olhos de toda a gente, em Am 3, 7-8 contradiz-se esta ideia da revelação pública ao afirmar que o Senhor "não fará coisa alguma sem "primeiro" revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas". Há, na realidade, diversos textos que deixam entrever a crença de que a morte não era para sempre, que o homem voltava à terra, que Deus o retirava do Sheol e, mais do que isso, que o Senhor "amava uns antes de nascerem e repudiava outros", quando um dos dogmas fundamentais do judaísmo era o do livre arbítrio, não podendo Deus, por isso, amar nem rejeitar sem motivos precisos, consequentes ao comportamento da pessoa.
A Reencarnação no Novo Testamento
O estudo dos livros bíblicos tem seguido caminhos diversos e desconexos, de acordo com o método e a perspectiva da análise: crítica textual, crítica das fontes, teologia bíblica, etc. Isto exige que se faça um estudo que relacione a sua formação e a redacção literária de modo que se compreendam melhor alguns problemas mal apresentados ou erradamente resolvidos, no passado, com o recurso unicamente ao testemunho das versões e interpretações disponíveis. Para entender bem a mensagem evangélica, é preciso que o estudo dos textos se faça a partir da sua génese ou história: qual é a origem do texto e que história lhe está subjacente, quais as influências que sofreu de literaturas afins e traduções, etc. É o que vamos fazer, recolhendo dois ou três textos significativos para os estudar numa perspectiva "diacrónica" 5 .
Devido a razões de objectividade, evitaremos qualquer juízo pessoal em relação aos dados, argumentos e conclusões da pesquisa hodierna. A perspectiva geral e a selecção do material, no entanto, bem como as opiniões discutidas, não deixam de reflectir a visão pessoal, com o propósito sério de ultrapassar a cristalização em que caiu o cânon, o texto, as versões e as linhas mestras do cristianismo exotérico.
Em muitos passos, a referência à reencarnação está implícita na mensagem evangélica, à semelhança do que vimos acontecer no A.T.. Não se pode compreender a exortação "sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito" 6 se não tivermos em mente o conceito de reencarnação, tão diminuto é o progresso alcançado por cada um de nós em cada existência física, mesmo nos dias de hoje em que a esperança de vida é muito maior do que nos tempos bíblicos. Noutros fala-se claramente do assunto. É clássico o exemplo de Elias, citado por Max Heindel: "Elias já veio e não o conheceram...e os discípulos compreenderam então que Jesus lhes tinha falado de João Baptista" 7 . Em Mat., 14, 1, temos outro exemplo. Lemos: "...Herodes disse: Este homem é João Batista que ressuscitou. Por isso é que ele tem poder para fazer milagres". Mas há casos em que a referência à reencarnação ficou ocultada pela tradução. É preciso, então, refazer a história textual, partindo das edições modernas até chegar aos textos mais antigos e, na medida do possível, reconstruir o sentido original dos autores bíblicos.
Certa vez, disse Jesus aos discípulos: "asseguro-vos que, no mundo que há-de vir…" ou "em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração..." (Mt 19, 28). Mas, no texto grego escreve-se: "εν τη παλιγγενεσία" (en té palingenesia). A palavra παλιγγενεσία (palingenesia), composta pelo prefixo "pálin" (de novo), e "génesis" (origem, nascimento), significa simplesmente "novo nascimento" ou, então, "renascimento". E, como o artigo τη (te), precede a palavra "palingenesia", torna-se claro que o autor se refere a uma reencarnação específica e não a qualquer outra das muitas que são possíveis. Como a cristificação ocorre depois de o espírito se graduar na Escola da Vida, no fim do presente dia de manifestação, este versículo deveria ler-se, pois, "...asseguro-vos que, na reencarnação final...". É a esta fase da evolução, no ponto da cristificação do espírito, a que S. Paulo se refere em Heb. 7, 25, quando fala na "salvação eterna", que se alcança quando formos como os anjos e já não pudermos voltar a morrer, de acordo com Lc. 20, 36.
Lemos noutro passo, agora em Tg. 3, 6: "pois a língua é como o fogo... e pode queimar a vida toda..." ou "inflama o curso da natureza... ". Ora, no texto grego lê-se: τροχον της γενεσεως (Trohon tes geneseos). "Trohon" é o acusativo de "roda", que tanto pode ser a roda de um carro como o antigo instrumento de suplício; "geneseos" é o genitivo de "génesis", que significa fonte, geração, nascimento, existência, ser. S. Tiago refere-se à língua como órgão da fala, capaz de expressar a natureza íntima do ser humano pela fala, o som. É esta natureza que nos leva à corrupção. Acende os fogos mais devastadores, capazes de incendiar o corpo emocional e desencadear a acção que sujeita o espírito ao ciclo contínuo de mortes e renascimentos, pelo menos enquanto "desejar encher o estômago com as bolotas que os porcos comiam" (Lc. 15, 16). Chegará, todavia, o tempo em que, já amadurecido, "cai em si e pensa" (Lc., 15, 17) para depois compreender que, afinal, é uma realidade distinta do corpo – o seu instrumento físico.
Quando, nas traduções correntes de Tt. 3, 5 lemos: "...purificou-nos com a água que faz renascer..." ou "...salvou-nos pela lavagem da regeneração", perdemos a verdadeira mensagem da carta de S. Paulo a Tito. No texto grego, está escrito: "λουτρον παλιγγενεσίας" (loutrou palingenesia). Ora, λουτρον (loutrou, genitivo de λουτρόν) não significa "lavar" mas o "local onde se toma banho (limpa ou purifica). Vamos encontrar o mesmo problema noutra carta, em Ef. 5, 26, em que S. Paulo, ao falar da vida dos casados e referindo-se à igreja, usa a mesma palavra λουτρον: "...fez isto para que ela fosse consagrada e purificada pela água... " ou "...purificando-a com a lavagem da água... ". Parece claro que, nestes dois versículos, as expressões utilizadas não traduzem a palavra grega loutrou, o lugar onde o espírito se purifica e regenera – a Terra – ao longo de sucessivas encarnações, em veículos de crescente perfeição, em perfeita sintonia com a evolução e com os fenómenos da Natureza.
A Ressurreição
Todos se recordam da pergunta que os saduceus (os materialistas dos tempos bíblicos), fizeram a Jesus acerca da ressurreição. Perguntaram eles a quem pertenceria, depois da ressurreição, uma mulher sucessivamente casada com sete irmãos e sem descendência (Mc. 12, 18-25). A pergunta foi inteligente, mas a resposta sobejamente satisfatória. Disse Jesus: "Porventura não errais vós... porquanto, quando ressuscitarem dos mortos, nem casarão nem se darão em casamento" ou ainda "...quando os mortos tornarem a viver... " (Mc. 12, 25).
Marcos, ao referir a inutilidade do casamento depois da ressurreição, escreve αναστωσιν(anastosin – ressuscitar, verbo, na voz activa, aoristo, na terceira pessoa do plural), mas, no versículo seguinte, usa o vocábulo εγειρονται (egeirontai – erguer, levantar; é um verbo, na voz passiva, na terceira pessoa do plural). A palavra egeirontai, do verbo "egeiro" – acordar, despertar, levantar – usa-se, como verbo transitivo, para pessoas, nos casos em que elas são despertadas do sono, da inconsciência ou da letargia, quando são estimuladas para a acção ou revolta, ou ainda para aqueles que realizam essas acções. Como substantivo, significa despertar ou restabelecimento. Não se pode deduzir da palavra, quer no sentido verbal quer no substantivado, o significado de "ressurreição" do corpo.
Por outro lado, a palavra anastosin, desde Ésquilo e Heródoto, tem o significado intransitivo de "levantar-se" ou "erguer-se". O estudo pormenorizado revela que anistimi-anastosin se refere mais a uma experiência escatológica, ao passo que egerontai expressa, por assim dizer, aquilo que acontece no âmbito da nossa experiência enquanto humanos. O versículo 25 parece referir-se à derradeira ressurreição, quando alcançamos a "salvação eterna" no dizer de S. Paulo, enquanto que o 26 faz alusão ao ciclo de renascimentos do espírito.
Deve-se ter em conta que o Novo Testamento não faz referência à "ressurreição do corpo", mas sim, e apenas, à "ressurreição dos mortos". Apesar das tentativas de Lucas no sentido de argumentar a favor da ressurreição do corpo físico de Jesus, o que apareceu sempre foi um soma doxes, corpo de glória, ou um soma pneumatikon, corpo espiritual. Paulo tem uma ideia muito clara acerca deste assunto. Não se refere, por exemplo, à experiência que teve com Jesus, na estrada de Damasco, nos mesmos termos em que se refere ao encontro com Pedro em Antioquia. Não disse ter visto o "ressuscitado". Fala de Jesus como sendo "o Filho de Deus" (Gl. 1, 15) e faz a pergunta "não vi a Jesus?..." (1 Cor 9, 1). Para ele, a ressurreição não tem que ser uma transformação do corpo físico, mas sim a sua substituição por um outro corpo. Significa isto que a contemplação visual do Senhor, depois da ressurreição, se ficou a dever a uma disposição psíquica de alguns discípulos. A ideia da ressurreição do corpo físico é muito posterior ao tempo dos Apóstolos. Há, no Antigo Testamento, uma estrofe do livro de Job, em Jb. 19, 26, que se julga insinuar a ideia da ressurreição "da carne". A tradução de João Ferreira de Almeida, que segue o texto massorético, diz: "depois de consumida a minha pele, mas ainda em minha carne, verei a Deus", mostra-se contraditória e errada. Na realidade, trata-se apenas de um lampejo de esperança, que nada tem que ver com a ideia de imortalidade do espírito, e deve ser distinguido da ideia judaico-cristã da ressurreição da carne no dia do julgamento. Job usa a expressão "em minha carne" para manifestar a sua convicção de ver a Deus numa forma concreta de percepção, de sentimento, de pensamento, e de volição, mas numa experiência fora da carne, isto é, como espírito desencarnado.
Os sujeitos da "ressurreição" são pessoas que se transformam, externa e internamente, naquilo que se pode chamar processo de cristificação, através do enriquecimento permitido pelas vidas sucessivas. A ressurreição pode, então, ser entendida de dois modos diferentes mas complementares: a do corpo, que se refere ao renascimento físico, e a do espírito, que se relaciona com a libertação da roda dos nascimentos e mortes sucessivas – a que Paulo chama "salvação eterna" na sua carta aos Hebreus (Hb. 7, 25) – quando já não for possível morrer mais vezes, como se afirma em Lc. 20, 36.
Cristianismo Latino Ocidental
A igreja ocidental, preocupada sobretudo com a teologia prática e com a sua organização jurídica, criou mecanismos de interpretação que ocultam o sentido do texto, mesmo quando se fala de hermenêutica. O estabelecimento do cânon da Escritura e da regra de fé, a regula fidei, expressa no credo trinitário, a preocupação do reforço da autoridade dos bispos, encarregados de velar pela ortodoxia da doutrina, levaram inevitavelmente ao desenvolvimento do dogma, relegando para segundo plano os problemas exegéticos e hermenêuticos.
Ambrósio (304-397) dava especial interesse à interpretação alegórica, que releva o sentido oculto da Bíblia. Jerónimo (340-420), por seu lado, valorizou a interpretação literal e histórica. E Agostinho de Hipona (354-430) considerava que, tanto o sentido literal como o espiritual, eram igualmente válidos (signum e res), sendo a regula fidei a regular qual dos sentidos, literal ou figurativo, prevalecia em cada caso. Este recurso à regra da fé suscitou o problema de saber qual a relação exacta entre a hermenêutica e o dogma. O desenvolvimento autónomo da hermenêutica ficou, por isso, praticamente interdito.
Diante de tudo o que parece evidente, e à medida que se confirma a existência de uma realidade anímica consciente extra corpórea e distinta da cerebral, já não se pode negar que o homem inicia agora uma profunda exploração do vasto e desconhecido universo do seu próprio ser. E também não se pode sucumbir por mais tempo à miragem de formulações dogmáticas. O que é preciso é estudar as coisas do espírito abandonando a falsa ideia de que a realidade é dupla e que se pode separar em dois campos: o da matéria e o do espírito. A realidade é una: ciência e religião não têm objectivos materiais diferentes. Elas são, isso sim, pontos de vista diferentes da mesma realidade.
Francisco Coelho
Notas
1 Max Heindel, Ensinamentos de um Iniciado, F.R.P., Lxª, 2001, Cap. 19.
2 Javier Parra, Mito y Realidade Sobre Otras Vidas, Ed. Casset, Madrid, 1992, pp.33-34.
3 Platão, Fédon, 75, 102, Livraria Minerva, Coimbra, pp 69 e ss e 109 e ss.
4 Id., Fedro, 249 e ss, Guimarães Editores, Lisboa, 1994, p. 64.
5 Dia-cronos: estudo do texto "ao longo do tempo".
6 Mt. 5, 48.
7 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, F.R.P., 3ª ed., 1998, pp. 135, 319. Cf. Mt 17, 12-13.
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