Conversando com os nossos leitores

Pergunte o Que Quiser... E saiba o Que Puder!

O Padre António Vieira e a Reincarnação


Aos 15 anos António Vieira foge da casa paterna para entrar na Companhia de Jesus. Mas não foi, como se julga, um génio precoce. De facto, “nos seus tempos de estudante compreendia mal, decorava a custo, fazia com dificuldade as composições”; em tudo aluno medíocre, com o que, já então pundonoroso, muitas vezes se afligia. É de imaginar que, orando à Virgem, lhe suplicasse tornar-se mais hábil nos estudos. Em um dos tais lances, a meio da súplica, sentiu como que um estalar qualquer coisa no cérebro, com uma dor vivíssima, e pensou que morria; logo o que parecia obscuro e inacessível à memória, na lição que ia dar, se lhe volveu lúcido e fixo na retentiva. Dera-se-lhe na mente uma transformação de que tinha consciência. Chegado às classes, pediu que o deixassem argumentar e com pasmo dos mestres venceu a todos os condiscípulos. Daí por diante foi o primeiro e o mais distinto em todas as disciplinas”1.

Agora, o seu amor ao estudo redobra. A sua ânsia de saber torna-se insaciável. E quanto mais estuda maior é a sede de saber.

Os “Exercícios Espirituais”2, de Inácio de Loiola (1491-1556), constituem um sistema ascético que parte da valorização da experiência concreta para alcançar a fronteira do sobrenatural. Tem semelhanças com as técnicas do budismo zen para alcançar o satori. Mas a influência mais forte que se identifica nos “Exercícios Espirituais” é a dos místicos islâmicos, provavelmente devida ao contacto de Inácio de Loiola com a Ordem religiosa dos Qadiriyya, dirigida por Abd al-Qadir al-Jilani (séc. XII), durante a sua permanência na Palestina. Mas também reflecte influência dos Shadhiliyya, de Abu al-Hasan al-Shadhili (1197-1258), oriundo de Sevilha e antigo professor desta cidade e de Córdoba. Devido a estas raízes, os “Exercícios Espirituais” viriam a ser o mais eficaz manual de acção que a Igreja jamais possuiu.

António Vieira dedica todos os momentos ao estudo ou às devoções que a regra impunha. Mas não se acomoda facilmente à disciplina imposta – como já vimos noutra ocasião. Não ficou indiferente à mística judaica. Com a expulsão dos Judeus de Espanha em 1492, os místicos dispersaram-se. O centro do movimento transferiu-se para Safed, na Galileia e muitos vieram para Portugal. Isaac Luria (1534-1572), que introduziu novos rituais, julgava-se a reincarnação de Moisés3. Desenvolveu a doutrina do renascimento, até ali um tanto obscura no misticismo judaico. Desde então considera o renascimento uma réplica do exílio bíblico do povo eleito com a finalidade do aprimoramento do espírito até que, atingida a perfeição, se possa libertar do ciclo de renascimentos. Através da reincarnação, garante Luria, o espírito pode corrigir erros de vidas anteriores.

A crença do povo judeu na reincarnação remonta a vários séculos como se vê na obra de Flávio Josefo (séc. I d.C.)4, um sacerdote judaico. Mas foi Isaac Luria que desenvolveu a formulação e conceituação de novas noções. E também não se pode olvidar a ligação de alguns jesuítas com o movimento dos “alumbrados” ou iluminados, onde se identificam influências do iluminismo Rosacruz5.

Na raiz dos sermões de António Vieira e das suas descrições assim impressivas, assim tremendamente visuais, estão, evidentemente, os “Exercícios Espirituais”, disciplina para ver claro, para ver sólido, para ver concreto. Pode dizer-se que nunca deixou de os praticar ao longo da vida. Assim marcado pelo profundo misticismo, no sentido de uma comunicação com o transcendente, de modo a constituir-se uma só unidade, o êxtase místico pode ser comparado a uma espécie de embriaguez.

E Vieira usa precisamente esta analogia: Diz: ele em certo passo: “Querem dizer estes santos que a embriaguez do cálix divino, chamando-lhe todos embriaguez, é semelhante, mas contrária, à do cálix profano”.

António Vieira dava especial atenção às imagens verbais na sua arte de pregar. Entre os sacerdotes da Ordem a que pertencia, a arte tinha uma função pragmática, principalmente a pintura e a escultura. Uma imagem esculpida ou pintada é muito próxima do seu modelo, é o alter ego da realidade viva. E uma imagem pode ocupar o lugar do modelo e possuir as suas propriedades6.

Por isso, Vieira afirma “as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos”7. Parece que a estratégia de Frei António das Chagas (1631-1682) satisfaria plenamente António Vieira.

Frei António das Chagas, um sacerdote contemporâneo de Vieira, podia realizar a visualização do que pregava, certamente por modificação das energias psicofisiológicas: “Haverá dois ou três anos começou a pregar apostolicamente (...) mas com cerimónias não usados dos apóstolos, como mostrar do púlpito uma caveira, tocar uma campainha, etc.”8

Os movimentos de objectos sem contacto têm sido presenciados com frequência e fazem parte dos fenómenos físicos da mística. Estes fenómenos estão muitas vezes associados a materializações e até à desagregação momentânea da substância sólida seguida da sua reconstituição.

No entanto, António Vieira critica esta solução por ver nela uma espécie de magia cerimonial, teatral ou milagreira, uma prática “contrária à dos apóstolos”. O importante para ele é o desvendar dos mistérios onde dormitam os aspectos mais significativos da vida do espírito fora do corpo.

O “renascimento, o tempo e a morte” é um tema quase permanente nos sermões de Vieira. Pode diz-se que a vida de Vieira foi uma longa e consciente preparação para a morte. Numa carta de 1677, enviada a Duarte Ribeiro de Macedo, diz: “não tenho a quem minha presença faça falta, nem a minha ausência saudades. Agora me parece que começo a viver, porque vivo com privilégios de morto”9. Num sermão admirável, feito em Roma, para ser pregado na data que marca o período de recolhimento e luto da Quaresma, António Vieira escolhe um tema centrado na palavra “pó”10. Usa-o como símbolo da transitoriedade da vida. É um texto notável pelo conteúdo, como também pela musicalidade. Diz ele que “saber morrer é a maior façanha”. Lembra que “morrer de muitos anos e viver muitos anos não é a mesma coisa”. E ensina claramente: “as artes ou ciências práticas não se aprendem só especulando, senão exercitando. Como se aprende a escrever? Escrevendo. Como se aprende a esgrimir? Esgrimindo. Como se aprende a navegar? Navegando. Assim também se há-de aprender a morrer, não só meditando, mas morrendo11. Outro trecho notável apresenta incríveis analogias com o solilóquio de Hamlet, escrito por Shakespeare apenas 71 anos antes. Diz Vieira: “Mortos, mortos, desenganai estes vivos! Dizei-nos que pensamentos, e que sentimentos foram os vossos, quando entrastes e saístes pelas portas da morte”12.

Esta prelecção sobre a morte centra-se na convicção do reforço da consciência depois da morte e serve para introduzir uma pastoral cerimoniosa e racional para lidar com a sua dor. António Vieira refere-se explicitamente à transmigração. Condena-a. Mas contraria logo o dogma da vida celeste eterna e afirma a do renascimento: “se o homem morrer a primeira vez como um ladrão, poderá morrer a segunda como um anacoreta”. E acrescenta: “nenhuma coisa se faz bem da primeira vez, quanto mais a maior de todas, que é morrer bem”13, o que parece uma evidência clara do conhecimento da doutrina do renascimento sucessivo.

Com todos os seus defeitos – defeitos inatos e defeitos da época ou do ambiente em que viveu – António Vieira é a figura mais complexa representativa e extraordinária do seu tempo. A sua vida mística é um comentário vivo de realidades espirituais vivenciadas conscientemente. Encontra o seu acabamento naquela universalidade de se ser homem, naqueles deveres que cometem à essência do homem como da consciência plena do amor, implicando este o voluntário sacrifício de si.

O que importa compreender na obra de António Vieira não é apenas o que está em letra impressa. Deve antes procurar-se nela a noção do valor do exemplo, da fidelidade às suas convicções, da sua preocupação em orientar as almas para o bom caminho com a sua moral activa e prática. Vieira não é o moralista que se isola na sua torre de marfim que sobre fantasias ou utópicos sonhos procura edificar as suas teorias. Pelo contrário. Vive todas as inquietações e incertezas da existência.

António Vieira mostra, como ensinam os Rosacruzes, que a mística não pode ser entendida como resíduo de experiências arcaicas e socialmente ultrapassadas. Tem o seu lugar no binómio exaustivo da vida social e espiritual moderna E revela também que a mística autêntica não dispensa aquela purificação a que só o auto domínio completo e a pureza de intenção pode conduzir.

Não é a partir da recusa de uma lógica racional que se encontram as verdades do espírito14. É pelo retorno dessa lógica às suas fontes experienciais mais completas, ao drama vivido de uma abertura do coração que não hipertrofia a razão em perplexidade ininteligível ou em visionarismo alienatório, mas antes faz o silêncio necessário para acordar o diferente poder do intelecto, que é esse coração intuitivo e espiritual do homem15.

F. C.

 

Notas

1 J. Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, Vol. I, p. 16; Clássica Ed. Lxª, 1992.
2 Vd. Exercícios Espirituais de St. Inácio, Livraria A.I. - Braga, 1983.
3 A. Unterman, Dicionário Judaico, Zahar Editor Rio de Janeiro, 1992.
4 Flávio Josefo, A Guerra dos Judeus, Livro III. Cap. 8, 5, p. 259, Ed. Sílabo, Lxª 2007.
5 J. S. da Silva Dias, Correntes do Sentimento Religioso em Portugal, Sec. XVI a XVIII, tomo I, Vol I, p. 169, Un. de Coimbra. Cf. Antonio Marques. Los Alumbrados, Taurus Madrid, 1972.
6 Lévy Brull, Las Funciones Mentales en las Sociedades Inferiores, Buenos Aires, 1947, p. 41.
7 Sermão da Sexagésima, p. 13, Sermões do P. António Vieira, Lello, 1907.
8 J. Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, Vol. I, p. 149; Clássica Ed. Lxª, 1992.
9 Cartas de António V por J. Lúcio de Azevedo; Carta XCVI, pág. 241, Vol 3; Imprensa Nacional, 1971.
10 Sermão de Quarta Feira de Cinza de 1673, Vol 2, p. 173-182, Lello, 1907.
11 Sermão da Quarta Feira de Cinza de 1673, Vol 2, p. 181, Lello, 1907.
12 Sermão da Quarta Feira de Cinza de 1672, Vol 2, p. 169, Lello, 1907.
13 Sermão da Quarta Feira de Cinza de 1672, Vol 2, p 180, Lello, 1907.
14 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 4ª ed., p. 163, Lxª 2005.
15 Id., Iniciação, Antiga e Moderna, Cap. X – A Transfiguração. pp 97-107; F.R.P., 1999; Cf. Conceito Rosacruz do Cosmo, p. 313.




[ Índice ]