Conversando com os nossos leitores
A Cruz e o Crucifixo1
Pergunte o que Quiser... e Saiba o que Puder *A cruz é um dos símbolos mais vulgares em todo o mundo e em todos os tempos. Podemos encontrá-la nos monumentos do Egipto, nas esculturas da Babilónia e nas ruínas da Pérsia e da Índia muito antes da era cristã.
Nas formas de arte rupestre paleolítica conhecidas em Portugal, e que Leite de Vasconcelos e outros autores abundantemente referem, vemos cenas de caça, danças rituais e episódios de combate que obedecem a fórmulas de interpretação mágica e esconjurativa. Recordem-se as figuras cruciformes e de círculos concêntricos reticulados do santuário rupestre do Gião (Arcos de Valdevez) e do penedo do Cachão da Rapa (Carrazeda de Ansiães).
Nesses desenhos, o que chama a atenção é a cruz ou, melhor, os sinais cruciformes. Algumas vezes estão inscritas em quadrados, outras estão associadas ao círculo. Assim, as cruzes, como estilização esquemática da figura humana com os braços abertos, teriam, nesses monumentos antigos, o significado de homens a adorar a divindade, ou a representar simbolicamente cenas rituais, quer propiciatórias, quer gratulatórias.
Homem de braços abertos, orante ou dançante, homem mortal ou deus imortal, vivo ou espírito de antepassado, ficou com o corpo reduzido ao traço vertical e com os braços representados pelo traço perpendicular, que formam, em conjunto, os braços da cruz. Cruz immissa ( + ); cruz commissa ou tau ( T ); cruz de Santo André ou decussata ( x ); cruz latina ( ), que é a cruz immissa com o braços desiguais, sendo o vertical mais comprido que o transversal; cruz egípcia, usada pelos cristãos coptas no Egipto, a qual decalca o hieróglifo faraónico ankh2;cruz gamada ou suástica3, usada com abundância na decoração da "casa da cruz suástica" das ruínas de Conímbriga, próximo de Coimbra a cruz é sempre usada como símbolo associado à vida e à renovação da vida.
Se é relativamente fácil identificar a presença da cruz em todas as culturas, a origem do significado esotérico é mais difícil de esclarecer. Vamos então levantar um pouco do véu que encobre a sua mensagem oculta.
A Dimensão Simbólica da Cruz
Começando por investigar os mitos mais primitivos que chegaram até nós vemos que os quatro braços da cruz se relacionam com os quatro pontos cardeais: Norte, Sul, Este e Oeste.
Quando o homem primitivo começou a olhar para cima, para o céu, contemplando o Sol e a Lua, teve início o desenvolvimento do simbolismo da cruz. Tiveram razão os homens de ciência que viam nela um sinal de movimento e de radiação, mais importante do que o significado simples que se lhe dava como resultado da evolução pictográfica da forma humana: um homem de braços abertos.
A observação continuada do firmamento levou a que os antigos percebessem a existência de um movimento circular das constelações em torno de um ponto central: a estrela polar. Perto dela viam mais sete estrelas, as da Ursa Maior. Através desta constelação marcaram-se os quatro pontos cardeais e foi esta, sem dúvida, a origem do Zodíaco dos tempos primordiais. A sua importância é tão grande que teve a honra de ser uma das poucas mencionada no Antigo Testamento, em Job 9,9.
A cruz tem, portanto, logo de início, um significado cósmico: ao indicar os quatro pontos cardeais simboliza a totalidade do cosmo. E a sua correspondência quaternária ilustra a repartição dos quatro elementos: ar, terra, fogo e água e das suas qualidades tradicionais.
Já estudámos anteriormente a origem astronómica das festas religiosas do cristianismo e o respectivo significado esotérico4. A relação entre os solstícios, os equinócios e as mais importantes festividades cristãs e a sua mensagem alegórica e simbólica também já foi analisada5. Os cabalistas, os místicos judeus, representaram as suas quatro ordens angélicas por três figuras de animais e uma humana. Vamos ver agora como estas figuras se relacionam com os quatro evangelistas.
Mateus, o primeiro dos evangelistas, é representado por uma figura humana, que não é mais do que o aguadeiro, o emblema do Aquário, um dos signos do Inverno. Este evangelista é o autor de uma genealogia de Jesus em que descreve minuciosamente os acontecimentos que precederam o nascimento. Os cálculos genealógicos de Mateus visam um objectivo bem determinado e naturalmente simbólico. A sua relação com o signo do Aquário é muito adequada pela vizinhança do solstício de Inverno, quando nasceu o Salvador.
O período festivo que tem início em Dezembro já era importante para os Egípcios, que celebravam uma importante festa religiosa em Sais quarenta dias depois do solstício de Inverno. Os cristãos seguiram-lhes o exemplo. Por meio de um fenómeno de osmose cultural e antitético, os cristãos passaram a celebrar o Natal em Roma, no século III-IV, a 25 de Dezembro, exactamente quando os romanos celebravam o Natalis Solis Invicti. E quarenta dias depois do Natal realizavam a procissão das Candelárias integrada na festa da purificação da Virgem (candela=círio).
O segundo evangelista, na ordem da sua relação com as estações do ano, é Lucas. O seu elemento emblemático é o Touro, um dos signos da Primavera, dos primeiros meses do ano. Lucas dá-nos mais pormenores do que Mateus em relação ao nascimento e à infância de Jesus. Relata-nos a sua apresentação no Templo e como foi encontrado entre os doutores na Primavera da vida quando, à semelhança da Natureza, despontam os indícios da missão futura.
O terceiro evangelista, Marcos, é representado por um Leão, que é um dos signos do Verão. O seu evangelho é o mais antigo e nada diz acerca da genealogia de Jesus, sobre o nascimento e a infância. Inicia o seu relato com os primeiros milagres de Jesus, ocupando-se, assim, da sua actividade na idade adulta e dá primazia às acções taumatúrgicas em vez de salientar o êxito da sua pregação. Na teologia de Marcos podemos sublinhar a doutrina do "Segredo Messiânico".
Temos finalmente o quarto evangelista, João, que é representado por uma águia que se relaciona com o signo zodiacal do Escorpião. Os Antigos recordavam os seus defuntos durante a passagem do Sol por este signo, que astrologicamente está associado à morte e à regeneração, celebrando uma cerimónia lúgubre, as Eleutérias, que deram lugar à comemoração da festividade de Todos os Santos instituída por João XIX no século XI.
Realidade e a Simbólica Religiosa
Também encontramos estas figuras alegóricas dos poderes corporificados das letras do fiat criador da elocução divina associadas aos evangelistas na visão de Ezequiel6. Foi a poderosa força dinâmica que elas representam e que ressoou inicialmente na matéria existente no espaço denominada Caos, que a transformou na substância física, tal como o calor transforma os líquidos viscosos de um ovo na solidez do esqueleto e outros tecidos de uma ave.
Há duas poderosas correntes de energia vital dignas de consideração no estudo do simbolismo da cruz. É bem elucidativo e profundamente didáctico apreciarmos aqui algumas linhas do que nos diz Max Heindel acerca destas correntes que dão vida a todas as criaturas da Terra. Diz ele que "os raios ou linhas de força dos espíritos-de-grupo do reino vegetal irradiam do centro da Terra para a periferia em todas as direcções. As árvores (e as plantas em geral) absorvem essas forças da vida pela raiz, as quais circulam pelo tronco até à copa".
E acrescenta, noutro passo: "as correntes dos espíritos-de-grupo animais circulam à volta da Terra. São mais intensas dos que as geradas pelos espíritos-de-grupo dos vegetais"7.
Vemos assim como a cruz assinala claramente as relações das plantas, dos animais e do homem com as correntes de vida na atmosfera terrestre. O reino mineral não está representado. O braço inferior da cruz indica a planta, que tem as raízes na terra; a parte superior representa o homem. O animal está representado pelo braço horizontal8.
Até aqui falámos apenas da cruz, que o povo coloca nos santuários, traz consigo como portadora de valor mágico e propiciatório, como sinal místico ou profiláctico, polarizador de energias, consagrando com ela pessoas e coisas.
Os conhecedores da dinâmica das energias subtis sabem que a cruz latina, construída com proporções normais baseadas no número 9, irradia beneficamente pelo centro, funcionando como um dispositivo transmissor de forças.
Vimos também que o simbolismo da cruz é anterior à sua apresentação plástica no mundo cristão e que esta simbologia é absorvida pela teologia cristã do mistério da cruz depois do século II com Justino estabelecendo paralelismo entre a cruz cósmica e a sua ideia de totalidade e a cruz de Jesus como autêntico símbolo falante dos mistérios iniciáticos.
Nas ruas, nos caminhos, nas estradas, a cruz é o cruzeiro ou o Calvário, simples ou com inscrições. Constrói-se ao ar livre ou debaixo de um alpendre, com finalidade devocional, ligada a actos de piedade, ou memorial, para comemorar factos históricos ou acontecimentos dolorosos (acidentes, mortes).
A Representação da Cruz de Jesus
Veremos agora o que se passa com o crucifixo.
De sinal humano, representação de um homem com os braços abertos, as diversas confissões religiosas, que não entenderam claramente o significado zodiacal da cruz, e ainda menos o sentido esotérico, associaram-na apenas ao suplício de Jesus no Calvário.
Correram séculos até que se vencesse a resistência no Ocidente europeu contra essa novidade proveniente do Levante que é a cruz com um corpo pregado e que não nos é apresentado antes do século VII.
A vida interna do cristianismo reflecte a divisão política, social e cultural do Império Romano. A sua divisão política e cultural em Ocidente e Oriente, no século III-IV, conduziu gradualmente à separação da Igreja Ocidental e da Igreja Oriental.
No Ocidente, a crucificação já era representada nos primeiros séculos, mas veladamente. À cruz ligavam-se outros símbolos, como o cordeiro. As primeiras representações da morte de Jesus na cruz vêm do Oriente: é numa das versões siríacas do evangelho (ano de 586) que se vê uma das primeiras imagens de Jesus crucificado entre dois ladrões.
Do lado de cá mantinha-se o simbolismo tradicional da cruz. Do lado de lá, no cristianismo oriental, nasceu uma reacção teológica que associou nitidamente a cruz ao instrumento patibular incluído no arsenal repressivo com que os romanos castigavam os escravos e malfeitores que não fossem romanos.
Do lado de cá passou a usar-se a figura de Jesus desnudada; no Oriente mantinha-se o uso do colobium de púrpura e apenas os braços ficaram nus.
Com a "invenção da Santa Cruz" pela Imperatriz Helena, mãe de Constantino o Grande, no século IV, espalhou-se o culto da cruz que, a partir do século V, passa a associar à representação o corpo de Jesus.
No Ocidente, devido à decadência e, depois, à supressão do poder do imperador e à desagregação do Império (cerca de 476), aumentou extraordinariamente a autoridade do chefe da Igreja, o bispo romano, que recebeu o nome de Papa. No Oriente, onde o império se conservou, os patriarcas não tinham esse poder. Foi muito fácil, por isso, que o concílio de Constantinopla, no ano de 692, determinasse no cânone XI que o "Cristo... fosse representado sob a forma humana". E assim deixou de se usar o cordeiro e outros símbolos para representar o sacrifício do Calvário.
No século VII terminou o período de transição do simbolismo da cruz para o do crucifixo. Os pontífices determinaram que o crucifixo fosse colocado nos oratórios, pintado nas paredes e depois invadiu os templos, sendo colocado em lugar de honra.
Deste modo, a cruz passou de imagem-signo simbólico a imagem representativa historicizante.
É a consagração do crucifixo.
Conclusão
Os cristãos estudiosos da apologética consideravam que os símbolos tinham mensagens importantes: mostravam o sagrado por intermédio dos ritmos cósmicos. Admitiam até que a revelação era compatível com as significações pré-cristãs dos símbolos, embora aceitassem que ela acrescentasse um valor novo, mais actual.
As revelações da sacralidade cósmica associadas aos evangelistas e às estações do ano, que se resumem no símbolo da cruz, são revelações primordiais que tiveram lugar no mais longínquo passado religioso da humanidade e que foram actualizadas pelo cristianismo.
Teófilo de Antioquia chamava a atenção para os indícios do renascimento do espírito anunciados nos grandes ciclos cósmicos: as estações do ano, os dias e as noites. Mas certos padres da Igreja primitiva quiseram moderar o interesse pela correspondência entre os símbolos propostos pelo cristianismo e os símbolos que são património da humanidade e, com o tempo, esta linguagem do sagrado ficou esquecida.
F. C.
Glossário
Apologética. Parte da teologia que pretende dar resposta às possíveis objecções da razão contra a revelação. Também se chama "defesa da fé".
Colobium. Túnica de mangas curtas.
Revelação. O mesmo que "tirar o véu", "descobrir". Fala-se de "revelação" como comunicação de algo secreto ou desconhecido. Na linguagem religiosa refere-se às comunicações directas de um deus ou por meio de uma personagem: sacerdote, profeta, anjo, etc.
Bibliografia
Alviella, Conde Engène G. De A Migração dos Símbolos, Ed. Pensamento, S. Paulo; Belmonte, Antonio, Juan As Leis do Céu; Mareantes, Editores, Lisboa, 2003; Cardoso, João Luís Pré-História de Portugal; Verbo, Lisboa; Correia, Virgílio Hipólito Conímbriga; Ed. ASA/Ministério da Cultura, Lisboa, 1993; Harlé, Dane, O Túmulo da Rainha Nofretari; Reconstituição Fotográfica, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1979; Ragon, J. M. Fêtes Religieuses Anciennes Comparés aux Fêtes Modernes; Paris, 1882; Vasconcelos, J. Leite de Religiões da Lusitânia; Lisboa, Imprensa Nacional, 1913, Vol. III.
Notas
1 Cf. "O Simbolismo da Cruz", in Revista Rosacruz, nş 329, Julho-Setembro de 1993, pág. 8.
2 No antigo Egipto, os túmulos serviam não apenas para proteger o corpo, mas também para assegurar a vida eterna. Os sepulcros dos faraós eram escavados no Vale dos Reis, a oeste da cidade de Tebas. De acordo com o ritual rigoroso, as paredes das salas eram ornamentadas com frisos em função das transformações necessárias ao renascimento do faraó, baseadas nos passos do Livro dos Mortos. O culto necessário à vida e ao renascimento celebrava-se noutro local: a partir do Novo Império (1554-1080 a.C.) realizavam-se nos templos localizados na planície.
No túmulo de Nofretari, uma esposa do faraó Ramsés II (1290-1224 a.C.), existe a representação figurativa de uma divindade, Hator, que tem o disco solar no toucado onde se reconhece o símbolo do signo do Touro. Na mão, Hator segura uma cruz ansada. Esta divindade é a deusa do amor, que permite o renascimento.
3 Formada por quatro gamas ( Γ ), letra do alfabeto grego.
4 Cf. Revista Rosacruz nş 327, Janeiro-Março de 1993 e seg.
5 Max Heindel, Cristianismo Rosacruz, Cap. IX - As Alegorias Astronómicas da Bíblia, The Rosicrucian Fellowship, E.U.A.,1929.
6 Ez 1; cf. Dan 7
7 Todas estas correntes, relativamente débeis e invisíveis, e as poderosas forças geradas pelo espírito de Cristo, tornam-se visíveis sob a forma de aurora boreal. A natureza das correntes provenientes dos espíritos-de-grupo dos vegetais tem sido, até aqui, de natureza idêntica à da electricidade estática. As originadas pelos espíritos-de-grupo dos animais podem considerar-se como do tipo da electricidade "dinâmica", que deu à Terra o seu poder de movimento em épocas passadas.
8 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 3Ş ed., F.R.P., 1998, p. 71-72.
* Nesta secção dá-se resposta a perguntas dos leitores, sempre que o assunto a justifique e o espaço permita.
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