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O Código da Vinci

O cristianismo nasceu no seio do judaísmo e do helenismo. Compreende-se e apresenta-se a si mesmo como aperfeiçoamento do judaísmo, pois a relação divina, iniciada no tempo dos patriarcas e dos profetas, conclui-se com a pregação do Evangelho. Mas os pensadores confessionais cristãos entendem que o Evangelho, como sabedoria divina, se dirige à fé, e que o helenismo, como sabedoria humana, apenas fala à razão. Consideram, por isso, que a razão tem como limite a revelação. Por outras palavras, acatam a evidência da autoridade em vez de aceitarem a autoridade da evidência.

Mas a linguagem bíblica – Antigo e Novo Testamento – oferece-nos um horizonte inteiramente diferente daquilo que na cultura ocidental constitui a temática dogmática das relações entre a fé e a razão. Na visão das escrituras não há distinção entre razão e fé, entre o natural e o sobrenatural. Fé e conhecimento permutam-se em perfeita reciprocidade mantendo embora cada um o seu tónus característico.

É com esta perspectiva que, depois de situar a figura de Maria Madalena nos evangelhos sinópticos, abordaremos a relação do cristianismo com o gnosticismo para, finalmente, verificarmos como no contexto cultural do fim da Idade Média, com uma síntese complexa das tradições filosóficas grega, judeo-cristã e árabo-helénica, o cristianismo se apropriou de legados culturais occitânicos por um fenómeno de osmose associado à prédica apologista, absorvendo o possível e reprimindo o contestável.

Diaconisas e Viúvas

O que nos revela a história comparada das religiões é que todas elas se instalaram mais por motivos sociais do que por razões teológicas. Na constituição social em que brotou o cristianismo deviam ser enormes os embaraços administrativos e sociais. Os apóstolos tinham sido os directores económicos mas, depois, por causas das reclamações, delegaram parte dos seus poderes. Surgiu uma nova estrutura, denominada Diaconato, inicialmente constituída por sete elementos. A sua função era essencialmente a de apoiarem os pobres. Assim, os diáconos foram os melhores pregadores do cristianismo, melhores ainda que os próprios apóstolos instalados em Jerusalém, a sua sede honorífica.

Estes cargos foram rapidamente ocupados por mulheres: dava-se-lhes o nome de "irmãs". De início eram viúvas e depois as virgens tiveram a preferência. A palavra "viúva" tornou-se sinónimo de pessoa devotada a Deus e, por conseguinte, de "diaconisa". As mulheres acudiam facilmente a uma comunidade que tanta protecção dava aos fracos e que punha a fraternidade e o casamento espiritual acima da família.

Nesse tempo, o casamento entregava a mulher ao marido sem restrições, sem compensação: era uma escravidão verdadeira. E o que não puderam fazer as sociedades antigas, nem o judaísmo, nem o islamismo, alcançou o cristianismo com a liberdade moral da mulher defendida desde o dia em que Jesus a consola e dirige, e às vezes move à resistência. Contrariando as velhas sociedades arianas, onde quase não se admitia senão o homem casado e o casamento era entendido no sentido mais estrito, fechado, abafado, egoísta, o cristianismo moderou esses excessos, formando uma união familiar de irmãos e irmãs fora dos laços da carne.

Maria Madalena é uma figura atraente para a maioria dos cristãos. Tal como é apresentada nos evangelhos é uma figura de mistério e de sombras. Embora referida no começo da narrativa ela é ignorada até irromper dramaticamente em cena no episódio do túmulo vazio. Consideram-na vulgarmente a pecadora referida nos textos bíblicos. Sendo os episódios a que está associada dos poucos que são comuns aos quatro evangelhos, bastará comparar as suas quatro versões – em Mateus e Marcos praticamente idênticas –, para se concluir que não há motivo algum para se identificar uma com a outra.

Em Marcos 14, 3-9, diz-se: "e, estando ele em Betânia, em casa de Simão, o leproso (...) veio "uma mulher", que trazia um vaso de alabastro...1". E em Mateus 26, 6-13 afirma-se: "E, estando Jesus em Betânia (...) aproximou-se ele "uma mulher"com um vaso de alabastro...".

Leia-se agora Lucas 7, 37: "E eis que uma mulher da cidade, uma pecadora, sabendo que ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento". Não há neste episódio a menor ligação a Betânia ou a Jerusalém. Apenas se refere ao anfitrião como fariseu.

Não deixa de ser curioso e contraditório que, sendo Lucas, em geral, tão "gracioso" com as mulheres, recorra neste passo ao epíteto "pecadora".

Segundo João 12, 1-8 teria sido Maria, a irmã de Lázaro, a derramar o perfume, enquanto Marta, a outra irmã, servia à mesa. Ora, se a mulher que derramou o perfume era Maria de Betânia, segundo o quarto evangelho, ou Maria Madalena, porque nenhum dos autores a trata pelo nome?

Sendo o texto de Marcos o mais digno de confiança, admite-se que a mulher que derramou perfume teria sido uma estranha ao grupo de discípulos e que a palavra "pecadora" seja uma interpolação posterior, talvez do próprio Lucas, ou até mesmo em resultado de confusão com o episódio da mulher adúltera em João 8, 3, uma pericope adulterae2. Todavia, os evangelhos sinópticos são compostos por muitos fragmentos de vários autores, facilmente separáveis e o episódio da mulher adúltera foi introduzido no evangelho de João já no tempo do Papa Calisto I (212-222)3.

É, por isso, falso e injusto que se identifique Maria Madalena com a pecadora.

Também não se pode arredar a hipótese de o texto original deste passo, em hebreu, se referir a Shimon Htvanua, Simão, o Humilde (essénio), e que essas palavras fossem mal entendidas e transformadas em Shimon Htvarua, Simão, o Leproso, devido à oralidade inicial da literatura bíblica. O Simão-essénio torna-se fariseu porque nem o Talmude nem os Evangelhos se referem aos essénios como uma seita especial.

De facto, não deixa de ser estranha a presença de um leproso em plena aldeia, em vez de extramuros, como era habitual. Lucas, ao referir-se à pecadora, conta-nos uma história enternecedora, mas as palavras agrestes de Jesus para com o anfitrião que este evangelista refere em 7, 44-47 levam a supor tratar-se de uma parábola só posteriormente convertida em facto real4.

Influência Gnóstica

Há que sublinhar, aliás, que a mulher podia, tanto como o homem, estar em situação de destaque dentro da comunidade cristã daquele tempo.

Pela análise dos documentos antigos e dos chamados apócrifos verifica-se a existência de vários cristianismos depois da crucificação de Jesus: o de Mateus, o de Lucas, o da igreja de Tiago, etc. Cada um procurava responder à pergunta "quem é Jesus?". A corrente que obteve a primazia dentro da Igreja foi a dos grupos ligados aos apóstolos. As outras foram consideradas heréticas, principalmente as que se relacionavam com o Gnosticismo e o Docetismo. A estrutura do círculo interno da comunidade apostólica é constituída pelo grupo dos sete, formada pelos apóstolos, que falam grego, e pelo grupo dos doze, que falam aramaico.

O paradigma judeo-cristão, posterior ao helenístico, pode ser classificado como de uma comunidade democrática, isto é, que vive em liberdade e igualdade entre pessoas que se consideram irmãos. De facto, Paulo refere-se-lhes em termos de igualdade, como se vê em Romanos 16-3, 9, 21; Gálatas 3, 27 ss, etc., ao usar o vocábulo sunergoús, que significa literalmente "colaborador", com o sentido de "colega".

Leia-se a parte final da carta aos Romanos para ver como eram numerosas as mulheres activas na pregação do Evangelho: dez das vinte e nove pessoas a quem Paulo se dirige são do sexo feminino. A primeira é Febe, chamada diaconisa. Júnia ocupa lugar particular em Romanos 16, 7 e Paulo considera-a apóstolo (o grego não dispõe de feminino para esta palavra). O grupo dos apóstolos, que detêm uma autoridade excepcional, é muito restrito, e a ele se junta mais tarde Paulo. Paulo também se refere, sem a mínima contestação, à actividade das profetisas. Confere-lhes até o direito de se exprimirem desse modo no seio da assembleia comunitária, desde que "tenham a cabeça coberta" como se vê em 1 Coríntios 11, 5. É evidente que a comunidade cristã, tal como Paulo a concebe, e que segundo a carta aos Efésios 2, 20 "está edificada sobre o alicerce dos apóstolos e dos profetas", também admite as apóstolas e as profetisas.

Mas, nos conflitos que ocorrem em Corinto, Paulo toma já uma atitude ambígua: cede às pressões do judaísmo da época que ele reforça recorrendo à cristologia: "o homem é o chefe da mulher e Cristo o chefe do Homem", como diz em 1 Coríntios 11, 3. Depois, nega-se às mulheres o direito de tomarem a palavra na assembleia. E a frase "as mulheres estejam caladas nas assembleias" é introduzida em 1 Coríntios 14, 34, ss., interdição essa reforçada depois nas cartas ditas pastorais5. E quanto a Maria Madalena, que nos sinópticos aparece como figura de primeiro plano entre as mulheres da Galileia, já não é nomeada em primeiro lugar entre as mulheres presentes ao pé da cruz no evangelho de João: cede o lugar a Maria, a mãe de Jesus, que os sinópticos não colocam junto da cruz.

No Ocidente latino dá-se até o caso de uma apostola eminente, como Júnia, a que já nos referimos, ser masculinizada para Júnias6.

Vejamos agora a lista de pecados referida em 1 Coríntios 6, 9-10 e 1 Timóteo 1, 9-10, onde se vislumbra já uma concepção do mal que reúne e combina o judaísmo e o helenismo do tempo e onde aparecem as grandes tendências do que se tornará a moral cristã. Não se vê qualquer "machismo" do autor nestes passos, que são mais de ordem moral do que teológica. Talvez a desconfiança em relação à mulher, na Idade Média, tenha aumentado entre os homens e, sobretudo, entre os eclesiásticos, numa espécie de reacção de defesa, na medida em que a mulher tomara importância.

A castração de Abelardo pode estar relacionada com a notoriedade de Heloísa7.

A Lenda do Graal

Já se imaginou todo o tipo de coisas sobre Maria Madalena. Diz uma lenda que ela se fez ao mar com o Graal numa barca sem leme nem vela e, mesmo assim, chegou sã e salva a Marselha8.

A ressonância do simbolismo da barca, de profundas conotações mortuárias com a barca de Caronte, também nos liga à história de S. Vicente, o padroeiro de Lisboa, que, segundo a lenda, terá viajado em condições idênticas, com escolta de corvos fieis, de Valência para Sagres e de Sagres para Lisboa. Uma outra, muito semelhante, fala-nos da chegada do Graal a Santiago de Compostela numa barca onde estava o corpo de S. Tiago, o Maior. Não esqueçamos, também, o eco deste simbolismo na literatura ibérica do século XIII: o Livro de José de Arimateia9 e A Demanda do Graal10.

O tema do Graal surge pela primeira vez no romance Parsifal, ou a História do Graal, escrito entre 1182 e 1883 por Chrétien de Troyes11. Nesta obra, o Graal é uma relíquia de natureza indefinida e de origem desconhecida.

Os seguidores de Chrétien de Troyes modificaram o espírito da obra e ajudam a cristianizar a lenda: o Graal torna-se o cálice usado na Última Ceia. Robert de Boron introduz-lhe até algumas personagens do cristianismo na obra José de Arimateia, ou o Romance da História do Graal, escrita entre 1191 e 1212.

Há, ainda, outra versão, denominada Parsifal, de autoria de Wolfram de Eschenbach, datada de 1210. O poema épico de Eschenbach explora o tema dos cavaleiros que procuram o Graal, e descreve o modo como eles são atraídos ou "chamados" pelo Graal. Ricardo Wagner baseia-se na versão de Eschenbach para compor a sua ópera Parsifal.

É neste terreno da literatura provençal de origem celta que Dan Brown junta alguns fragmentos históricos para construir uma das premissas do seu livro de ficção.

Conclusão

A ideia não é nova em absoluto. Já na Idade Média a dogmática cristã, a forma de pensamento dominante, com o imenso poder aglutinador da Igreja, cristianizou mitos e ritos antigos, apropriando-se também do mito celta do Graal. A alusão a José de Arimateia, por exemplo, constitui uma componente cristã do período de assimilação.

Os motivos fundamentais do Graal são de origem celtico-pagã, embora se admita também influência indo-oriental12. As diversas versões do mito apresentam-nos o Graal como um objecto imaterial de natureza enigmática: como uma pedra, caída do céu13; como uma taça ou uma salva, às vezes de ouro14.

Em qualquer dos casos, o Graal aparece-nos estreitamente relacionado com as "mulheres"15 que, por vezes, incorporam alguns atributos do próprio Graal. É interessante o simbolismo do Graal, enquanto pedra celeste, se relacionar com o tema cristão da legião dos anjos caídos ou luciferinos.

Tais mitos revelam que entre os povos celtas do ocidente a sensação de harmonia com o universo nunca se perdeu inteiramente devido, em parte, ao facto de a influência romana ter ficado algo distante da orla ocidental.

O Papa nem sequer foi reconhecido pelos Celtas até ao século VII, porque estes povos não eram adaptáveis a um cristianismo legalista de Estado, que era o modelo de Roma. Mas o cristianismo em si foi bem recebido. Não tiveram dificuldade em aceitar os milagres de Cristo, habituados que estavam aos poderes invulgares dos druidas.

Por outro lado, as histórias célticas foram associadas com Artur e foi delas que se extraiu a lenda arturiana, tal como a conhecemos.

Interpretadas como um ensinamento religioso secreto, as lendas arturianas encarnam todas as experiências e símbolos preparatórios de um verdadeiro culto de mistérios. A Távola Redonda simboliza o universo e todas as suas forças. O Graal é o coração do homem – o cadinho do alquimista da experiência evolutiva – na medida em que o seu grande mistério atinge dimensões humanas. É uma realidade impenetrável, oculta pelo disfarce da linguagem alquímica ou metalúrgica, que é uma maneira de referir o mistério do despertar espiritual16. Mas a popularização destas histórias degenerou-as do seu espírito para o sentido físico dos símbolos, das imagens e das cerimónias impostas pela exterioridade cultural, sendo nessas imagens degradadas que foram assimiladas pelo cristanismo.

A obra de Dan Brown contribui para essa regressão a uma inferioridade racional, revocando a mente vulgar à subordinação dos símbolos e mitos decaídos.

F. C.

Bibliografia

1 Seguimos a tradução de João Ferreira de Almeida.
2 Vamberto Morais, O Mistério de Jesus; Ibrasa, S. Paulo, 1990; pág. 130.
3 Robert Ambelain, Los Secretos del Gólgota; M. Roca, 1986, pág. 82
4 Joseph Klausner, Jesus de Nazaret; Paidós, Barcelona; 1991, pág. 310.
5 Cf. 1 Tim 2, 11 ss.
6 Nuevo Testamento Griego-Espanol, V. Reina Valera; Ed. Clie, Barcelona, 1984.
7 Cartas de Abelardo a Heloísa; Guimarães Editores, Lxª, 2003.
8 Otto Rahn, Cruzada Contra o Graal; Hugin, Lisboa, 2000; pág.155, n. 92.
9 The Portuguese Book of Joseph of Arimateha; Hare Carter, 1967. O original perdeu-se. Resta um apógrafo do século XVI. Cf. Manuscrito 643 da Torre do Tombo.
10 A Demanda do Graal; Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lxª 1995.
11 Chrétien de Troyes, Perceval ou le Conte du Graal; Flammarion, Paris, 1997.
12 Otto Rahn, ob. cit. pág. 234; A. Nutt, Studies on the Legend of the Holy Grail; London, 1888, p. 57.
13 Gérard de Sède, Le Secret des Cathars, Ed. J’ai Lu, Paris 1974; pág. 165.
14 Id. Ob. Cit.; pág. 125.
15 Max Heindel, Mistérios das Grandes Óperas; Fraternidade Rosacruz de Portugal, Lxª, 1997; p. 66.
16 Id., ob. cit. págs. 67-68.




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