O QUE A BÍBLIA NOS ENSINA

Saulo e os Essénios

O autor dos Actos dos Apóstolos apresenta-nos Paulo (então chamado Saulo), ao relatar a morte de Estevão por apedrejamento. Informa-nos que Paulo não só consentiu na morte do apóstolo, como também "assolava a igreja, fazendo grandes estragos"1. E conta-nos depois (capítulo 9) a sua conversão. A caminho de Damasco sofre uma experiência traumática (relatada por Lucas; embora Paulo, por estranho que pareça, não a confirme plenamente). Uma luz, vinda do céu, derruba-o do cavalo. E ouve dizer: "Saulo, Saulo, porque me persegues?" Recuperado, descobre ter ficado cego. Recupera a visão em Damasco e faz-se baptizar.

Durante o seu ministério, Paulo volta-se decididamente para os gentios. É desconcertante verificar que, nas suas cartas, não há qualquer vislumbre de palavras, gestos ou atitudes de Jesus – talvez por não os julgar adequados ao público gentio, quer dizer, aos não-judeus. O conteúdo da sua obra missionária em Antioquia é posto em causa. Os chefes da comunidade de Jerusalém, que advogam o estrito cumprimento da Lei, acusam Paulo de laxismo, de desvio do ensinamento original, puro. Ele mesmo o reconhece2. E surge, com o tempo, um clima de atrito que levou Paulo a sustentar violentas querelas com os primeiros apóstolos – particularmente com Pedro. Porque teria alimentado esse conflito, inesperadamente violento, com Pedro, discípulo de Jesus, (Gal., 2, 11-21), chegando a repreendê-lo severamente, a chamar-lhe hipócrita (Gál. 2, 13) e acusá-lo de "não andar rectamente segundo a verdade" (Gál. 2, 14)?

Este incidente só pode ser entendido pela análise da influência essénia na "igreja primitiva". De facto, o estudo crítico revela, surpreendentemente, que entre os essénios e os primeiros cristãos há muito mais do que o simples uso de palavras comuns: há uma autêntica e profunda comunhão de espírito que se revela na organização das primeiras comunidades e na função dos seus membros. Os conceitos filosóficos essénios, bem como a sua linguagem, são particularmente visíveis nos Actos dos Apóstolos, na Epístola de S. Tiago e nas abundantes cartas de Paulo. Vamos ver apenas dois exemplos:

O paqid, inspector ou administrador da comunidade de Qumran, é equivalente a epískopos, de onde vem, por intermédio do latim, a palavra "bispo". E a palavra "multidão", que nos Actos dos Apóstolos designa o conjunto de fiéis, corresponde a rabbim, termo hebraico que exprime a ideia de grandeza pelo número – ou a de dignidade. É esta a origem do título "Rabino", dado aos doutores da Lei judaica3.

Para compreendermos esta fase histórica do cristianismo, anterior à fusão do "magistério" com o "império", estudemos, em primeiro lugar, a importante função de Pedro, o primeiro apóstolo.

A Organização da Comunidade Essénia

Se nos debruçarmos sobre a análise de um dos manuscritos essénios, chamado "A Regra", ficamos a saber como se fazia a admissão de membros na comunidade. Todos tinham de passar por um exame à sua inteligência e às suas aptidões para a disciplina4.

Este exame era feito por um supervisor, inspector, inquiridor, ou ainda prognosticador, como lhe quisermos chamar, que tem um título: Kephãs. Esta palavra aramaica equivale ao qualificativo grego Cephãs, aplicado a Simão5. O significado da palavra é hoje um tanto complexo, embora perfeitamente definido para os essénios. Designava aquele que, como Simão, era capaz, entre outras coisas, de "ler os pensamentos e o rosto das pessoas", ou seja, que era clarividente e dotado da capacidade de profetizar. Aliás, este é o único nome pelo qual Paulo parece conhecer o chefe da Comunidade de Jerusalém (a rara aparição, nas epístolas, do nome Pedro, é geralmente considerada uma intrusão tardia)6.

Essénios, Curadores e Profetas

É conhecida a reputação dos essénios como terapeutas ou curadores, capazes de curar: o corpo, das doenças; e o espírito, das obsessões7. Esta capacidade de visão especial, que permite desmascarar o espírito obsessor e expulsá-lo do corpo do doente, é constantemente relatado no Novo Testamento. Não ordenou Jesus ao espírito obsessor que deixasse a sua vítima, perguntando-lhe "Que nome é o teu?" (Marcos, V). As actividades curativas também são comuns na vida de Pedro. Na história da cura dum aleijado (Act. 3, 4-5) e na do incidente com Ananias (Act. 5, 1-4) há alusões claras à sua capacidade de visão espiritual.

O Sinal do Profeta Jonas

No evangelho de Mateus, Simão8 é mencionado pelo seu patronímico "filho de Jonas". Em aramaico, a frase seria bar-yonah (bar = filho de). Mas os estudiosos admitem há muito que o sobrenome não seria um patronímico, mas um título. De facto, esta palavra, diz John Allegro9, deve ser lida baryona, que significa "o vidente". Por isso, a frase "bem-aventurado és tu Simão, filho de Jonas..." terá um sentido diferente: "bem-aventurado és tu, Simão, o vidente..." (Mat. 16, 17-18). Não se compreende melhor, assim, o resto do versículo?

Ficamos também a saber, agora, a origem e o sentido autêntico do passo do Evangelho de S. Mateus, em que Jesus interroga os discípulos10: "E vocês, quem acham que eu sou?" Unicamente Simão, olhando-o, reconheceu, clarividentemente, a sua tarefa messiânica!

Foi ele quem, tendo preparado já a sua "pedra filosofal", como diz Max Heindel11, por meio da alquimia espiritual, conquistou o direito de possuir "as chaves do reino espiritual", quer dizer, tinha acesso aos mundos do espírito.

Petros e a Pedra

O jogo com a palavras gregas Petros (Pedro) e petra (Pedra), é óbvio e está relacionado com o percurso iniciático. Max Heindel analisa-o em pormenor e esclarece que, no caminho da evolução, há três passos fundamentais. Ao primeiro corresponde a Petra, a rocha firme e dura, sinónimo de insensibilidade. Com o segundo se relaciona litos, a pedra cúbica, polida pelo serviço. E o terceiro está associado a psêphos leukê, a "pedra branca" a que se refere o Apocalipse (2, 17).

É, pois, pelo facto de o apóstolo Simão já ter a função de "rocha" (cefas), de seleccionador, de ser vidente e profeta, que se lhe dá o nome de Pedro e não o contrário.

(continua)

F. C.

 

1 Actos, 7, 59; 8, 2.
2 Cor. 11, 3-4; Gál. 2, 6-16.
3 Lucia Corti, J. Maltes e Martín C. Cosani, Paradigmas, pág. 55, Madrid, 1987.
4 Regra, VI, 13-14, citado por E. Laperrousaz, Os Manuscritos do Mar Morto, Porto, s/d.
5 Daí a nota (estritamente incorrecta) de João: Tu és Simão...serás chamado Cefas, que quer dizer Pedro. João, I, 40-42.
6 John M. Allegro, O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto, Cap. XIV, Lisboa, 1979.
7 A palavra "essénio", segundo alguns estudiosos, deriva de uma palavra suméria que significa "adivinho" ou "mago". Permaneceu assim no idioma acádico e daí passou para o aramaico e outras línguas semíticas com sentido diferente: "aquele que faz prodígios".
8 A palavra Simão (Simeon, em grego), frequente nas histórias do Novo Testamento, faz lembrar semeion, que significa "sinal".
9 Ob. cit., Lisboa, s/d.
10 Mat. 16, 13, Mac. 8, 27; Luc. 9, 18.
11 Ensinamentos de um Iniciado, Capítulo II.




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