EDITORIAL
A Violência Juvenil
O problema da delinquência infantil e juvenil já preocupava as nossas autoridades em meados do século XVI, como se deduz da leitura de documentos da época que referem a existência de "pais dos velhacos", ou seja, de indivíduos assalariados pelos municípios com a incumbência de darem educação a menores abandonados. No início do século XX o interesse pela criança tornara-se já de tal forma grande que ela se converteu, praticamente, no centro de gravidade do mundo. Após todos os exageros – carinhosos e românticos – chegou finalmente o tempo da ponderação. É que, para educar bem, há que conhecer esse enigma vivo que é o espírito da criança. Se os destinos do País e do mundo dependem da direcção que se der à criança e da educação que se lhe ministrar, compreende-se bem como o problema infantil desempenhará, cada vez mais, um papel fundamental. Pedagogos e sociólogos não deverão, porém, enfermar de uma visão unicamente aduladora (logo, deformada e romanesca) da infância, própria de quem se limita a observá-la à distância.
"De meninos se fazem os homens"1, disse Max Heindel, para sublinhar que o período infantil é substantivo, único, a verdadeira chave para se compreender os períodos subsequentes – que por ele são preparados e condicionados.
O problema de um mundo melhor tem, pois, como fulcro, a criança. Não basta defendê-la e protegê-la: é preciso conhecê-la, orientá-la, dirigi-la, corrigí-la nas suas realidades espirituais e sociais.
E, para isso, importa conhecer as respectivas tendências, para que se corrijam ou incentivem em devido tempo. Os pais, porque convivem com os filhos, julgam muitas vezes conhecê-los. Contudo, as causas do seu comportamento escapam-lhes de entre as mãos, como água. Não basta conviver com alguém para conhecer esse alguém, especialmente quando as paixões separam os indivíduos. É o caso de pais a quem o amor paterno muitas vezes cega, levando-os a defenderem intransigentemente muitas atitudes erradas das crianças. Agindo assim, por desconhecimento, não reparam na tendência da criança para os imitar, para repetir os seus próprios actos ou atitudes (mesmo os que são praticados inadvertidamente), na ânsia de reproduzir o que vê e ouve dos pais, companheiros ou parentes. E a criança imita não só o bom, mas também o mau... Ou seja, boa parte da educação infantil gira à volta de um acto visto2.
Os vários modelos a imitar aumentam de número à medida que a criança vai crescendo e multiplicando as suas relações com os familiares e até com a televisão – e o que se vê na TV torna-se mais perturbador à medida que o visionamento quotidiano é progressivamente mais solitário, com a multiplicação dos televisores, redução do número de membros do agregado familiar, etc. Este fenómeno social da redução das dimensões das famílias tem vindo a acentuar-se, segundo alguns entendidos, desde o Renascimento, a par das modificações nas formas de produção. Associado à perda gradual da estabilidade, intensificou-se com a Revolução Industrial, em que o aumento da especialização transformou o homem numa engrenagem – cada vez mais solitário, inseguro, diminuído, frustrado, angustiado3.
Agora, que os meios de comunicação (em especial a televisão) transformaram o mundo numa "aldeia global", e que partilhamos problemas como crises ambientais, sociais e económicas, somos, cada vez mais, testemunhas de enormes carências de conhecimento, afectividade e espiritualidade. A nossa "aldeia" é quase exclusivamente dominada por princípios orientados para o poder: político, social, económico, religioso e interpessoal. E assim, na nossa sociedade de consumo, que sabe o preço de tudo mas desconhece o valor de quase tudo, o valor da pessoa é aferido pela força, habilidade, destreza, perícia – pela capacidade de fazer isto ou aquilo.
A educação é orientada segundo a ideia-chave da confusão do que nós somos com o que nós fazemos. O educando, moldado por tal educação, fica irremediavelmente submetido ao medo e à ambição: à ambição de poder, mandar e dominar; ao medo da liberdade e da autoridade4.
Esta ideia condutora destrói a integridade da pessoa, persuadindo o indivíduo de que a força é um direito e de que a responsabilidade na liberdade é menos desejável do que a liberdade da responsabilidade. Por isso, a criança (o filho na família e o aluno na escola) é preparada para a submissão... ou rejeição da autoridade.
Assim educado, o indivíduo não vê a realidade dos outros seres humanos nem a sua própria: só vê, em tudo e todos, força ou fraqueza, das quais, por uma comparação fatal, deriva a sua apreciação dos valores humanos. Faltam-lhe valores e referenciais interiores e essa falta evidencia-se em muitas das patologias sociais conhecidas: a droga, a violência crescente, etc.
E é esta ausência de valores que, pelo menos em parte, gera os sentimentos de vazio e de indignação e dificulta a convivência. Por isso, a educação na escola deve ter em conta os valores que são universais, os que não têm preço mas que têm alma, e não exclusivamente do ponto de vista teórico e académico, mas compreendidos como um processo integral de transformação de valores éticos e atitudes.
É esta educação em valores universais que deve ser a base da cidadania, pois desde cedo possibilitará à criança respeitar-se a si mesma e às outras, preparando-a para o conhecimento de si própria de modo a poder responder às interrogações que ninguém se cansa de colocar: "De onde vimos? O que somos? Para onde vamos?" e para conhecer a evolução do seu próprio espírito, evolução essa que não é uma simples hipótese, mas uma verificação. Se o problema da criança é, actualmente, como parece, um dos que mais preocupam o mundo, é preciso que os modelos educativos preparem o educando para descer a estas profundidades, conhecê-las e investigá-las melhor, para se orientar quanto ao que é, quanto à sua formação e desenvolvimento, a fim de conduzir cada vez melhor a sua existência.
F. C.
Notas
1. Max Heindel, O Véu do Destino, F.R.P., Lisboa, 1996, p. 45.
2. Id., Princípios Rosacruzes para a Educação Infantil, F.R.P. 2000, p. 6.
3. Id., Ensinamentos de um Iniciado, F.R.P., Lisboa, 2000, Cap. V.
4. Peter Fletcher, O Medo e os Conflitos Emocionais no Mundo Moderno,Pub. Europa-América, Lisboa, p. 28-29.
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