FILOSOFIA
A Lenda de Abraão
A Bíblia de si mesma é letra morta, que está a pedir intérprete; não está sistemática e metodicamente ordenada como um compêndio. É muitas vezes obscura e dificílima de entender, como diz S. Pedro, falando das cartas de S. Paulo (2 Ped. 3, 16; cf. Act 9, 30-31) e exposta, por isso, a falsas interpretações.
Do seu primeiro ponto de vista acerca da transmissão da divina revelação, passou Lutero a ensinar que a Bíblia podia ser até interpretada por cada um dos seus leitores, "até pelo mais humilde criado de moleiro e por uma criança de 9 anos". Mas quando os anabaptistas, os zuinglianos e outros começaram a pôr em dúvida o seu ensino, reconheceu, ele próprio, que a Bíblia se tinha tornado um livro muito difícil. Vamos, então, continuar a nossa conversa. Que tema nos propõe para hoje?
Há dois que gostaria de analisar: o da violência biblicamente justificada e o da moral sexual. Se a estatística tem algum valor, o que se pode pensar do facto de haver mais de 100 passos bíblicos em que é o próprio Deus que ordena, explicitamente, que se matem pessoas?
As imagens tradicionais de Deus contribuem para fazer d’Ele um ser remoto para milhões de pessoas dos nossos dias. Para O pôr de novo no meio da vida, comecemos por analisar o sentido autêntico das palavras que, no texto bíblico, se traduzem por "Deus" ou "Senhor".
Vejamos o caso da palavra "Eloim". Refira-se que o termo el (hebreu), ilu (babilónico) ou ilá (árabe), que existe em todas as línguas semíticas e que exprime agora a ideia de Deus, designou, primitivamente, a força que transmite aos seres a energia, a vitalidade e o vigor, mais do que um deus ou uma pessoa divina. Era o "espírito da árvore" ou o "espírito da fonte". Tinha aqui fundamento a adoração das árvores, montanhas, rochas, etc. Na Bíblia são numerosos os vestígios desta adoração.
Diga-me, então: haverá, noutras culturas, palavras com significado idêntico?
Há. Por exemplo, o mana, entre os Polinésios; o brahma, entre os Hindus, e o numem entre os Latinos.
E como evoluiu o significado desta palavra?
A origem do culto de Javé, a figura central da religião judaica, é a mais importante questão no estudo do Judaísmo e também a mais difícil. O que é certo, é que Javé não foi sempre o Deus nacional dos Judeus. Inicialmente, nem sequer foi Deus de todos os Israelitas, principal núcleo do grupo de tribos hebraicas. Mas isto não se coaduna com o facto de Moisés, a quem Javé revelou o seu nome e escolheu como medianeiro, pertencer não à tribo judaica mas à dos Levitas, e de todos os sacerdotes de Javé pertencerem, por regra, aos Levitas. Os judeus não podiam servir Javé. Por isto, há quem admita que Javé era inicialmente o Deus dos Madianitas, que viviam no Sinai, perto da fronteira com o Egipto. Abona a favor desta versão o facto de Moisés ter casado com a filha de um sacerdote madianita.
Todavia, a opinião amplamente difundida na ciência, de que, no início, Javé era apenas o Deus da tribo judaica, tem apoio no facto de a dinastia dos reis hebraicos, desde David, no século X a.C., pertencer à tribo judaica e terem estes reis achado útil transformar o culto de Javé, que era o mais popular, em culto de Estado.
Quer dizer, então, que a palavra el se refere a um dos muitos deuses desse tempo?
É, precisamente, o caso. Era o deus, único ou principal, de uma tribo ou povo, de uma determinada localidade, portanto, a personagem que para esse grupo ou localidade era o deus. E na Bíblia, no livro dos Reis, em Rs 27, 26 e seg. ainda se vê esta ideia no espírito do autor ao referir-se a Javé como o "deus da terra"; e no livro das Crónicas, em 2 Cr 32, 19, também há uma referência ao "deus de Jerusalém"! El foi uma divindade importante do panteão cananeu e de Ugarit.
E como se tornam os hebreus monoteístas?
O assunto é complexo. Mas, em resumo, pode-se dizer que, nas religiões das tribos e dos clãs, a força vital perdeu cada vez mais o sentido de mana ou numem para ficar gradualmente associada à ideia do chefe de um grupo humano, o deus dos antepassados desse grupo e, portanto, uma pessoa. É esse, aparentemente, o sentido da palavra "el", existente em numerosos nomes de tribos e de povos: Ismael (o deus da tribo atende todas as súplicas) ; Israel (o Deus luta); Iacobel (o Deus é astuto). Quer dizer, os hebreus anteriores à época de Moisés eram politeístas, admitiam a existência de vários deuses.
E que se pode concluir daqui?
Que os eloim são uma hoste de seres espirituais que colaboraram na formação do universo. É isto que explica o emprego da palavra no plural, eIoim, significando "deuses", quer para designar muitos seres divinos ou apenas um deus ou Deus. E mesmo quando a palavra é usada no singular, pode construir-se uma frase com adjectivos e verbos no plural! À palavra eloim dava-se o sentido vago de "poderes divinos".
Não é, portanto, Deus, na acepção que lhe damos, o responsável pela violência dos povos bíblicos?
Não. Essa responsabilidade é de Javé, um ser divino cuja função era a de orientar a nação hebreia até um estádio evolutivo em que pudesse dispensar a sua influência. Era na defesa do seu povo que o deus de Israel ordenava a violência. O texto bíblico manteve-se inalterado, mas o sentido da palavra modificou-se.
Quer dizer, então, que devemos atribuir a estes textos um valor essencialmente educativo, catequético?
É exactamente isso. Estando perante uma epopeia, temos de tomar estes textos como lendas, no sentido etimológico da palavra, isto é, que devem ser lidos com um sentido esotérico próprio e, portanto, nunca poderão legitimamente ser lidas à letra.
E agora, o que dizer da moral sexual do A.T.? Abraão era polígamo, não hesita em entregar a mulher para o prazer do faraó, fazendo-a passar por sua irmã, para ser bem tratado. Mentira, adultério, proxenetismo, num livro sagrado, sem uma condenação! (Gén 1,10-20).
Para responder a esta pergunta é preciso lembrar a necessidade de estudar a origem do material pré-literário usado na redacção do texto bíblico. Este material foi transmitido oralmente e só depois foi escrito. O que lemos hoje resulta de um trabalho de "colagem" de várias histórias com fins educativos. Por isso, a história da mulher de Abraão é contada três vezes de maneira diferentes: em Gén 12, 10-20; 10, 1-18 e 26, 6-10. As pessoas envolvidas nos acontecimentos são diferentes. No Génesis 12, são: Abraão, Sara e os Egípcios; no capítulo 20, são: Abraão, Sara e o Rei Abimeleque, de Guerar; e no capítulo 26, são: Abraão, Isaac, Rebeca e o rei dos filisteus, Abimeleque. Neste contexto uma variável é digna de nota: a mulher que é tida como irmã de Abraão é reconhecida como sua esposa de três maneiras diferentes. E a poligamia é simbólica. Ou, melhor, não é carnal. Sarai e Agar, as duas "esposas" de Abraão, simbolizam, respectivamente, o "eu superior" e o "eu inferior". Agar, o "eu inferior", a natureza sensual e mundana, era escrava, isto é, dominada, por Sarai. Um dia revoltou-se, mas foi rapidamente submetida e levada a "casa de Sarai", ao domínio do "eu superior". Isto, claro, depois de Abraão viver em Canaã os cabalísticos dez anos, número que simboliza a plenitude, a realização possível no fim de um ciclo evolutivo.
O que significa, então, a história de Abraão?
A lenda de Abraão, que é simbólica, como diz Paulo em Gál. 4, 22-26,simboliza o percurso evolutivo do espírito humano, ao longo de doze passos ou estádios de desenvolvimento. O primeiro corresponde ao nascimento, o segundo ao chamamento e à migração, o terceiro à consagração de Betel, o décimo primeiro relaciona-se com a circuncisão, etc. O rito da circuncisão relaciona-se com a purificação, do corpo e do espírito. Quando se abandona a luxúria, a energia vital fica disponível para a actividade do cérebro. É por isso que o simbolismo da circuncisão está associado ao da iluminação espiritual. O sacrifício de Isaac é a prova da renúncia: o equivalente, no N.T., à tentação de Jesus no deserto.
Estude o incrédulo estes assuntos e verá desvanecerem-se as suas dúvidas. Com o esclarecido e simples raciocínio descobrirá que, tanto o Antigo como o Novo Testamento, não é um livro como outro qualquer, sim um livro incomparável, sublime, único por seu argumento: a evolução passada e futura do espírito humano.
Ariel
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