Filosofia
Goethe, O Alquimista
I Parte«Existe em todas as religiões a possibilidade de atingir a mais elevada pureza.» – Goethe.
É geralmente admitido pelos seus biógrafos que Goethe, em determinada altura da sua vida, se interessou pelas artes e ciências ocultas, e que o seu poema Os Mistérios (1784 - 1786) mostra que ele era, em certo sentido, um rosacruciano.
«Quem colocou sobre a cruz a grinalda de rosas?», inquire o poema, e somos levados a concluir, segundo todas as probabilidades, que foi o próprio Goethe que ali a colocou. Mas há outra possibilidade.
O poema apresenta ao leitor um jovem monge em missão a determinado convento, no cimo de uma alta montanha, e o qual, ao cair da noite, se perde no caminho. Porém, descobrindo um pequeno carreiro através do bosque, decide seguir por essa vereda, na ânsia de chegar ao seu destino. O Sol vai desaparecendo por detrás do pico da montanha enquanto ele se esforça por atingir o cume, quando de repente ouve o som de campainhas. Olhando para trás, na direcção de onde vem o som, numa campina protegida pela montanha, tendo por pano de fundo uma floresta, vê um belo edifício, iluminado pelos últimos raios do Sol poente, como se lhe estivesse sendo apontado. Precipita-se então para a campina e, através da erva molhada pelo orvalho, aproxima-se da porta. Ali – enquanto o Sol se põe por detrás do cume da montanha e os seus últimos raios afloram o cimo da entrada – apresenta-se-lhe um estranho espectáculo: uma cruz – mas não a Cruz ortodoxa da Igreja –, uma cruz guarnecida por uma grinalda de rosas, e do ponto central da cruz, ou de uma rosa no ponto central, emergem os raios de um jacto de luz. Ao peregrino sugerem a Trindade, pois é um triplo raio de luz, e – observa um comentador – representa um triângulo. Uma vez que na arte sacra o triângulo denota sempre um membro da Trindade, é possível que Goethe assim o pensasse neste caso, mas de facto o poema não menciona nenhum triângulo. É um tríplice raio de luz que brilha no centro da grinalda, no ponto onde está dependurada na cruz.
Pode ser que aqui signifique uma luz artificial – a luz de uma lanterna; ou que os raios do Sol poente iluminem a grinalda; ou, conforme a direcção em que Mark, o peregrino, seguiu, o Sol poente possa brilhar «atrás» do emblema, enviando os seus raios «através» dele. Goethe não era dado a ideias obscuras; e podemos estar certos de que tinha em mente alguma imagem muito nítida, da qual devemos ter a intuição.
Sugerimos noutro lado que a grinalda equivale à «Glória da Rosacruz», com referência ao Livro M, sobre as forças secretas da Natureza, que CRC traduziu da língua árabe e de que o inglês John Heydon garantiu por seu turno que havia feito a tradução fiel para inglês no seu livro The Wise Man’s Crown («A Coroa do Homem Sábio»), ou Glory of the Rose Cross («Glória da Rosa Cruz»), publicado em 1664. A mesma Glória é exemplificada mais tarde no poema onde o Fundador é denominado Humanus: o melhor e mais sábio dos homens. Encontra-se também uma referência a esta ideia na Divina Comédia, de Dante, onde há um jogo intrincado relativamente às letras da palavra «Homo», culminando no Divino M, escrito em grande sobre o arco celestial. «O Livro M é, de facto, o Livro do Cálice Sagrado»1.
Uma nova onda de rosacrucianismo se espraiou sobre a Europa em 1710 e cruzou os mares até à América2. Durante o período revolucionário, tanto na América como na França, foi possível observar esta influência, a qual se conservou poderosa através da era de revoluções que se seguiu.
As forças do conde de Saint-Germain penetraram nessa época na Maçonaria para a tornar útil como um instrumento para promover os direitos humanos por toda a parte, e sabemos que a pequena nação americana teve a ajuda dos liberais tanto franceses como alemães, que viram no novo continente um possível berço para a comunidade ideal com que sonhavam.
Um dos alemães que foram à América com o fim expresso de ajudar a nova nação americana a separar a Igreja do Estado foi o conde Von Zinzendorf, que foi o mestre místico de Fraülein von Klettenberg, que ensinou Goethe na sua juventude e o guiou para o estudo e a prática da alquimia. Fraülein von Klettenberg, como o seu mestre, tinha tido uma visão de Cristo, tão real, que havia beijado as Suas feridas.
Trabalhava constantemente para conseguir uma idêntica exaltação mística nos seus amigos, e sem dúvida trabalhou no jovem Goethe para tal fim, embora aparentemente sem sucesso, pois Goethe nessa altura não era suficientemente místico ou, se o era, nunca disse nada a esse respeito.
De qualquer forma, foi um Dr. Metz, um do seu círculo de amigos, que utilizou uma determinada «panaceia» para curar Goethe de uma séria doença; tratava-se de uma substância branca que se dissolvia na água. Mesmer, que também viveu nessa época (1734-1815), dava aos seus doentes um fluido claro, o qual, após ser examinado, mostrou ser água pura.
Mesmer foi consequentemente denominado embusteiro; mas evidentemente que todos aqueles que leram os seus escritos sabem que Mesmer magnetizava a água, dando essa água magnetizada como medicamento.
Contudo, parece que o medicamento do Dr. Metz continha qualquer coisa sólida, como foi demonstrado pela tentativa do filho de criar essa panaceia num laboratório que arranjou em casa de seu pai. Tinha ele cerca de dezanove ou vinte anos nessa ocasião.
Em Goethe, o Alquimista3, o Prof. R. D. Gray diz: «É necessário um certo esforço da imaginação para ver o jovem Goethe a retirar-se para as águas-furtadas da sóbria casa de classe média de seu pai, com as suas gravuras da Roma clássica e o seu sólido e respeitável mobiliário, para se ocupar com fantásticos fornos e retortas, sais e cristais misteriosos, e receitas para conseguir o elixir da vida. Contudo, é isso que ele próprio descreve na sua autobiografia.»
Esse período marca a sua iniciação no rosacrucianismo, pois a alquimia era para a Idade Média o que a física nuclear é para os tempos modernos, e essas investigações estavam ainda muito em voga nos princípios do século XIX, quando Goethe era um rapaz. Mais tarde falava jocosamente das suas investigações mágicas e alquímicas; contudo, há indícios nos seus últimos escritos de que ele nunca as abandonou completamente. Leu ele o Chemical Marriage of CRC («Casamento Químico do CRC») com a idade de trinta e sete anos e por essa altura escreveu Die Goheimnisse («Os Mistérios»); e, sendo um admirador de tudo quanto era italiano, sem dúvida que leu e compreendeu o rosacrucianismo da Divina Comédia, de Dante, onde a Rosa Branca Cósmica é a última grande visão. Dante, a quem denominam «o Gibelino», porque pertenceu a essa facção durante a maior parte da sua vida, é possível que tenha pensado na Rosa Branca por esta ser o símbolo gibelino (embora alguns digam que era um lírio), sendo também o símbolo da Virgem Maria como tipo de pureza e sabedoria.
Quando o irmão Mark descobre o convento no cimo da montanha com a Rosacruz sobre a porta, apenas nos falam da grinalda ou coroa de rosas sobre ela colocada; mas a luz branca que emana do ponto central, onde se interceptam os dois braços da cruz, pode sugerir ali uma rosa branca, uma rosa de luz branca, ou uma estrela. A rosa tem cinco pétalas; a estrela tem cinco pontas. Os três raios significariam a parte de cima da estrela, como é descrita por alguns simbolistas modernos da escola de Goethe.
Goethe, na juventude, acreditava que a dualidade e variedade da criação eram devidas à influência de Lúcifer: «variedade» com o significado de «anarquia», porque todos os elementos lutam para dominar. Todavia, Goethe não encara Lúcifer como o mal: ele simplesmente representa uma condição natural do universo – quer se lhe chame Lúcifer ou qualquer outra coisa, pouco interessa. Goethe chamava-lhe uma esfera, a qual, logo que se abandona o ponto central, emite raios em todas as direcções. Deus é o Centro Principal, irradiando na criação em todas as direcções; Goethe chama a esta acção «Lúcifer». Obviamente, Lúcifer não é para Goethe mais do que um nome usado para designar uma condição na qual o equilíbrio da vida é perturbado. O equilíbrio deve ser restabelecido e a vida volver ao Centro. Consegue-se então a Unidade, sendo a Dualidade eliminada.
Tudo isto é demonstrado no símbolo da Grinalda na Cruz, pois o Ponto Central é o Ponto do qual a Luz emana, e a Luz que emana tem eventualmente que volver ao seu Centro e Manancial.
Rosacrucianismo e teosofia eram sinónimos nessa época. Um dos livros que Goethe estudou intitulava-se Opus Mago-Cabbalisticum et Theosoficum e sem dúvida que Goethe conhecia esse Dionísio, o Teósofo da Lenda Dourada (século XIII) que a tradição identifica como Dionísio, o Areopagita, que Paulo converteu na colina de Mars, em Atenas. Foi este Dionísio que introduziu no cristianismo as doutrinas herméticas e neoplatónicas, relacionando os ensinamentos egipto-gregos com o cristianismo nascente; e quer fosse o Dionísio da colina de Mars ou outro, mais tarde, escritor da sua escola, isso não altera os pontos essenciais da questão. Foi a teosofia de Dionísio a base da grande angelologia e esquema do mundo de S. Tomás de Aquino, que foi uma réplica à Divina Comédia, de Dante.
Os historiadores reconhecem que o esquema de Dionísio, com a sua teosofia, tem origem neoplatónica, no princípio da era cristã. Diz-se que foi o mestre neoplatónico de Plotinus, Ammonius Saccas, quem primeiro usou, e talvez inventou, a palavra «teosofia».
O platonismo de Goethe (ou neoplatonismo) é reconhecido por todos os estudantes dos seus trabalhos.
Contudo, os alquimistas medievais que receberam os ensinamentos dionisianos (areopagitas) por intermédio do mundo islâmico, no século XIX, quando Erígena traduziu os escritos para latim, os quais, entretanto, foram rejeitados e perdidos; não eram homens da Igreja ortodoxos, no sentido moderno, pois durante as primeiras idades do obscurantismo as doutrinas da Igreja ainda não se haviam concretizado. Era possível ser um bom católico e mesmo assim rejeitar algumas doutrinas, tais como a assunção corpórea da Virgem para o céu. Os padres não eram necessariamente celibatários; e mesmo a Sagrada Eucaristia não tinha uma definição tão firmemente estabelecida como nos nossos dias.
Só na era da Inquisição – que surgiu das cruzadas albigenses – é que a doutrina católica se tornou fixa e rígida e a liberdade intelectual seriamente proibida, como se exemplifica muito claramente no caso de Roger Bacon.
(Continua)
Ann Barkhurst
1 Graal: cálice usado por Cristo na última ceia.
2 Alguns escritores, fazendo as contas com base num ciclo de 108 anos, começam esta era em 1693-1694. Por exemplo, 1693 mais 108=1801; 1801 mais 108=1909 (1694 evidentemente que termina com 1910).
3 Ronald D. Gray, Goethe, o Alquimista; Cambridge University Press, 1952.
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