Editorial
Pão e Circo
Abater as fronteiras, riscá-las do mapa! Eis um ideal que mergulha as suas raízes na civilização helenística supranacional visionada por Alexandre; no romano-centrismo imperial de César e de Augusto; na afirmação cristã de que os homens pertencem a uma única pátria e de que, portanto, só tem sentido a cidade universal dos homens enquanto potencial cidade do espírito.
O fim do conceito de Império, de uma unidade conquistada e imposta por uma pátria centralizadora, permitiu a canalização do mesmo ideal para um princípio que se pode chamar de supra nacionalista.
Com a transformação da Europa num enorme espaço maltusiano vivemos hoje um fenómeno idêntico ao que se verificou há milénios na antiga Grécia. De antigo vencedor terminou vencido, imitando certos costumes e revestindo uma certa mentalidade do povo dominador, ao tempo, pela superioridade da sua técnica, da sua política, da sua administração e até, a partir de certo momento, da sua cultura.
Ficamos agora submergidos por muitas coisas, umas desejáveis, outras indesejáveis, que têm fora do nosso país o seu ponto de origem ou, pelo menos, de desenvolvimento. Somos hoje, cada vez mais, com relação à nova Europa, uma velha Grécia – para o bem e para o mal.
Para não poucos dos nossos contemporâneos, "cair na crise" é sinónimo de queda num caminho juncado de obstáculos e de destroços de projectos, que se transformaram em desilusões, colorido com todos os matizes da solidão, do desespero do espírito de contestação, da crítica, da revolta, da insurreição, da violência.
Perante o estado de coisas em que a nossa sociedade mergulhou e se movimenta, caracterizada pela instabilidade, incerteza e angústia, sente-se o desfalecimento dos valores tradicionais e a falta de interiorização de substitutos capazes de assegurarem a continuada integração individual e colectiva. Para isso contribui a televisão, cuja função de entretimento obedece às regras de exploração dos instintos mais baixos do sangue e do sexo, com a decorrente destruição de todo o espírito crítico e de qualquer tentativa de procura do sentido da vida.
Dificilmente se poderá dizer que esta vaga de instabilidade generalizada tem uma única origem, seja ela socioeconómica, educativa, política, religiosa.
Pediu-se à economia, à história e à sociologia que desse o modus vivendi melhor, orientasse a criação de uma sociedade estável, desse o sentido último da aventura humana, individual e colectiva.
A resposta nunca foi dada capazmente. Perante essa falência, os constrangimentos que impedem a espantosa vontade de fruir e de viver da sociedade contemporânea, estimulada pelas atracções de uma sociedade em que as exigências feitas ao homem – tornado uma peça de maquinismo, um elemento estatístico, um sujeito de consumo – aumenta na razão directa do progresso tecnológico, do incremento demográfico, da complexificação industrial. E isto acentua, cada vez mais, a desintegração e a instabilidade do tecido social. A pessoa que assumiu um valor meramente comercial procura, regra geral, no limitado das relações e no seu estreitamento, a estabilidade que, dia após dia, sente fugir-lhe debaixo dos pés. Torna-se presa fácil de todas as armadilhas de exploração e de alienação1 usadas no jogo social do poder.
Aliena a economia – pela escassez e pela abundância; aliena a política e aliena a religião.
A alienação chega ao ponto de atingir o próprio sentido de festa, de uma festa que não deve ser de simples assistência passiva a um espectáculo de drogagem de massas, mas de participação criadora e comunitária de todos e de cada um, de urna festa que seja a celebração da vida na sua profundidade, ôntica e ontológica, a entrada no espaço sagrado do mistério, a participação colectiva num elemento que eleva e redime, a catarse regeneradora de toda a existência.
Desabituado assim o espírito das participações criadoras e enriquecedoras, resta-lhe apenas uma saída de sentido lúdico: a dos divertimentos entorpecentes, onde a sua presença é unicamente hipnótica e passiva, como nos grandes espectáculos televisivos e de características desportivas – transformados no engodo moderno equivalente ao panem et circenses – pão, trabalho e espectáculos de circo – a solução do regime escravocrático da velha Roma.
O homem que se deixa cair nesse vazio, criado pelas disfunções da sociedade e que não se valoriza a si mesmo, que está à-vontade ao sentir-se idêntico a todos os outros, que perde a raiz e os valores tradicionais, que se deixa levar pelas marés de irracionalidade até mesmo no que respeita ao entretimento, é, acima de tudo, um homem adormecido que partilha da mediocridade colectiva.
A habituação a estes males é tal que uma espécie de resignação fatalista àquilo que entusiasma as multidões surge como o seu corolário mais evidente: "Se fores a Roma, faz-te romano".
Lidando, por um lado, com a filosofia rosacruz, que é, radicalmente, amor ao saber aplicado e, por outro, conhecendo as aspirações à verdade e ao conhecimento dos nossos concidadãos, impõe-se-nos a nós, mais do que a ninguém, com todos os nossos limites, funcionar como dos correctivos mais eficazes destes males, que actualmente afligem o mundo e que amanhã correm o risco de se tornarem fatais.
Como? Fazendo-os compreender que eles estão votados a um destino superior àquela realidade mesquinha e habitual do monoteísmo de mercado em que se vêem inseridos; evitando que o homem se perca no anonimato das multidões flutuantes em angustiante e moral isolamento, enquadrando-o nos grupos de trabalho, autónomos e suficientes na orientação da vida intelectual e do espírito.
Não se dará a alienação, autêntica ou apenas temida, porque ele se entregou, ou se foi entregando, a absolutos que, na realidade, o não eram, sejam esses absolutos o dinheiro, a volúpia, o poder ou o ritualismo religioso sem conteúdo de vivência?
Não se dará a alienação porque ele consentiu, ou foi consentindo, em tornar-se objecto em vez de sujeito, coisa em vez de pessoa?
De facto, o homem, que nasce indivíduo, forma-se pessoa.
Quando deixado a si, ao seu bel-prazer e aos seus instintos, o indivíduo é susceptível de cair nessa condição que é verdadeira caricatura do que deve ser o "homo humanus", em que se troca a qualidade pela quantidade, se perde o carácter e até uma certa substância humana, se adopta o "carreirismo" como sistema de valores e de vida.
Mas o homem forma-se pessoa. Quer isto dizer que ele evolui para um ser realmente supra-humano, pelo seu desenvolvimento como consciência e como liberdade.
O homem só se erguerá homem na e para a "humanitas", se desenvolver as suas capacidades de conhecimento, de autodomínio, de decisão, de responsabilização. Querer superar os limites da barbárie motorizada em que vivemos e conquistar os poderes divinos não é pecado: pecado, digamo-lo, é a preguiça, é a resignação.
É preciso então quebrar os vínculos das habituações inúteis, dos conformismos insignificantes, para conhecer a relação do Uno com o Todo e do infinito com o finito, e compreender, sem qualquer degradação da transcendência exprimindo-a em termos de exterioridade, que Deus e o homem não são um nem dois: não existe de um lado um homem e, acima e fora dele, um Deus, algures para além do mundo, como o tio rico do Brasil, um provedor de necessidades ou solucionador de problemas – ideia que resulta da distorção do pensamento bíblico pela cultura helenística.
A filosofia rosacruz é antes de mais uma filosofia de libertação e uma forma combate contra as alienações. Não será, talvez, a "arma absoluta", mas uma das armas a manejar por aqueles que assumem a tarefa ou se encontram investidos na missão de educadores do género humano.
Uma educação para amanhã não pode deixar de enfrentar hoje a questão "quem sou eu?" como a questão fundamental, por mais inovadoras que se apresentem as técnicas pedagógicas, para que o homem possa, na tarefa libertadora dos seus conformismos sociais, mentais e religiosos, desenvolver as suas potencialidades como via de acesso ao supra-real.
Quando? O adiamento, que é a vitória dos fracos, transforma-se em atraso; e a espera em preguiça e em demissão.
Deixar para amanhã pode dar ocasião a um adiamento quase perpétuo.
F. C.
1 Restringimos aqui o sentido do termo "alienação", conferindo-lhe apenas o significado de "exploração emocional", política, religiosa ou comercial.
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