Editorial

Eros e Hermes

Eros e Hermes são duas divindades da mitologia grega1. Os media anunciam o seu regresso, não no melhor do seu poder e glória, mas no mais trivial da sua abjecção... a uma feira de pornografia.

Antes que velar a face ou passar de lado, convém encarar o assunto de frente para lhe apreender a significação.

Simboliza Eros, entre o povo grego que lhe deu nome e sentido, a vida, a fecundidade, a energia como força cósmica de atracção e como força humana que leva dois seres incompletos e insatisfeitos a encontrar-se para mútua complementação e satisfação. E também, por isso mesmo, a saudade e a dor.

Simboliza Hermes, para lá da sua função de transmissora da vontade dos deuses, do prenúncio da comunicação social e das tecnologias de informação, aquela espécie de protecção superior que assiste aos ladrões e comerciantes.

Vão reunir-se em Lisboa, Eros e Hermes: desfiguradíssimos, despudoradíssimos, sem sombra de dignidade.

Por influência dos poetas, pintores e escultores, Eros é retratada com figura de criança; tem asas e é ágil. Vendam-lhe frequentemente os olhos para simbolizar a cegueira das paixões. Revela o seu lado sombrio ao subjugar os corações humanos e triunfar sobre o bom senso.

Hermes colhe os seus lucros no terreno emocional de Eros. Por outras palavras, Hermes beneficia com a estupidez natural de Eros. Sem rebuço. Manipula-a a seu bel-prazer. E para converter os espectadores dos seus rios emocionais, onde só aflora uma paixão – a paixão pelo nada – Hermes utiliza ainda vários outros ardis. O primeiro é o da naturalidade. Ao ridicularizar a vergonha, dizendo ser anacrónica, obsoleta, tenta erradicá-la dos costumes e substituí-la pela impudicícia e pela nudez, tanto exterior como, sobretudo, interior.

Assim esvaziada e exposta, sem inquietações morais e culturais, Eros desperta-se para o mergulho no imediato, na busca incessante do prazer e do bem-estar.

Convém agora lembrar que o homem tem uma dupla natureza: a da animalidade e a da razão. O homem é feito, elaborado, pela educação que recebeu, pela civilização de que emerge, pela sociedade em que flutua; e este homem pronto, adulto, é que é o verdadeiro homem natural.

São, pois, forçados e absurdos os paralelismos que Hermes quer estabelecer entre os homens e os bichos, entre o homem civilizado e o selvagem, entre o homem evoluído e o pré-histórico, entre o homem adulto e a criança – correspondência, esta última, de todas a mais torpe: a desvergonha adulta a justificar-se com a candura infantil.

É flagrante a semelhança das actuais práticas de Hermes com a daqueles filósofos da Grécia chamados Cínicos, para não dizer que quase as copia – salvo na parte nobre da sua doutrina.

Com efeito, a Escola Cínica propugnava o menosprezo de todas as instituições, costumes, leis, convenções sociais, riquezas, o que implicava, obviamente, o desalinho do vestuário e a indiferença pelas boas maneiras.

Simplesmente, acontece que os Cínicos eram virtuosos. Tudo aquilo tinha como fim atingirem a paz do espírito, através da independência dos prazeres dos sentidos. Aconselhavam, em suma, a castidade.

Mergulhada na frivolidade, a actual sociedade orienta-se sobretudo para o dia de hoje, para o bem-estar e o prazer imediato. Todos parecem interessados em abandonar de vez a antiga cultura burguesa centrada na poupança, moderação, costumes puritanos, apontando para o dia de amanhã. Hoje as coisas são diferentes. O que Hermes estimula, e o que já tornou uma enfermidade no Ocidente, é o consumismo, o hedonismo e a permissividade que gira à volta abundância. De facto, há cada vez mais gente repleta de tudo, cheia de coisas, que percorre a vida consumindo, entretida com banalidades, mas sem quaisquer outras pretensões.

Ora, um ser que se move ao redor das falsas necessidades criadas pela publicidade massiva e por interesses miniaturizados, sem referências, sem pontos de apoio, aviltado, rebaixado, convertido num ser livre mas que não sabe para onde vai, torna-se presa fácil do conflito que envolve as três liberdades que nele se conjugam: a física, a biológica e a espiritual.

Devemos situar neste ponto as barreiras que se opõem à evolução da espécie do homo sapiens. A primeira é a da liberdade física, pela qual o homem persegue freneticamente a comodidade física seguindo o caminho do menor esforço. A segunda liberdade é a biológica. É onde mais se evidencia a indiferença relaxada, mistura de insensibilidade fria, céptica, desapaixonada e cruel do animal descontente em busca de prazer sem alegria.

A liberdade responsável é a matriz onde desabrocha a espiritualidade consciente – que cresce segundo a lei básica da humanização: emergência pessoal em convergência comunitária. O crescimento faz-se num determinado contexto sociocultural. Com efeito, os outros chamam-nos constantemente, apelam aos nossos sentidos. Mas, para que a pessoa seja livre, consciente e responsável, precisa de descobrir fins e valores para o seu compromisso humanizante. A ausência de valores conduz o homem (varão ou mulher), a uma crise existencial profunda, ainda mais do que a não satisfação dos impulsos libidinais associados à liberdade biológica. O que mais angustia o ser humano é a falta de sentidos profundos para viver de maneira livre e criadora. A prová-lo está a crescente multidão de jovens agressivos e angustiados, que já não se encontra socialmente condicionada: pelo contrário, a satisfação de tais impulsos, sem sentidos profundos, é que os conduz a novas angústias e agressividades. Ao desembocarem assim na permissividade, por debilitação das bases morais e incapacidade de crítica, desarmonizam-se com a natureza e constroem um mundo social e material doentio.

Mas pelo exercício da liberdade espiritual o homem espiritualiza-se e espiritualiza. Ao usufruí-la intervém activamente sobre o eu e o mundo numa perspectiva de harmonia universal e não de conflito. Há nesta forma de liberdade uma estrutura de convivência que permite realizar o ser entre os diversos níveis do real. Convém, por isso, saber disciplinar o usufruto das respectivas liberdades. É preciso que o exercício de uma não seja obstáculo definitivo ao processamento das outras.

Neste conjunto de conflitos entre liberdades, o papel da filosofia rosacruz deve ser o de levar a cabo a transmissão de sentidos e valores. Mais do que isso: deve constituir-se orientação das linhas mestras que iluminarão a existência quotidiana do homem dentro do seu próprio ser e relativamente ao mundo que o rodeia – e que não pode ou não deve estar sob o signo da irreflexão, do vazio e da indiferença. É neste ambiente alucinatório dos apelos de Hermes, em que o plano racional e os critérios lógico-racionais ficam à margem2, que a filosofia rosacruz tem de haver-se, clarificando a inutilidade da ressurreição e da aliança monstruosa de duas divindades pagãs: Eros e Hermes.

F.M.C.

 

 

1 Eros, do verbo érasthai, estar inflamado, significa, stritu sensu, desejo incoercível dos sentidos. Corresponde ao Cupido latino, filho de Vénus. Hermes é o Mercúrio da mitologia romana.
2 É o caso da maior parte dos programas televisivos, que se caracterizam por cenas de conflitos elementares, conteúdo amorais e situações raramente edificantes, e dos intermináveis concursos em que se confunde a memória com a cultura.




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