Filosofia

A Metáfora do Deus Encarnado
IV – A Encarnação

1. Introdução

Nos capítulos anteriores começamos por falar do esquema de pensamento e molde religioso que tomou à letra a ideia de um universo de vários andares isolados entre si. É certo que para os dois teólogos mais amadurecidos do Novo Testamento, S. Paulo e S. João, não era de estorvo nenhum a ideia de um Deus "lá em cima"; nem sentiam qualquer constrangimento em falar com à vontade em "subidas" e "descidas" do Filho do Homem.

Ficámos a saber que embora o cristianismo tenha destronado completamente a noção ateniense de um Deus que habita em templos feito pelo homem e precisa de ser servido por mãos humanas, a verdade é que aceitámos, como parte das nossas vidas diárias, as ideias veiculadas por esta linguagem descaradamente mitológica.

Vimos também por que o conhecimento cristão de Deus veio a ser expresso em forma trinitária, não como no sentido de três partes sucessivas de seu ser, mas como uma tríade de Pessoas com funções definidamente separadas.

Ultrapassado, assim, o esquema piedosamente superficial e deformado da cristologia tradicional, iremos agora estudar o problema levantado pela maneira corrente de pensar de acordo com a formulação tradicional do cristianismo, que é o de saber como é que Jesus pode ser o Cristo e, ao mesmo tempo, verdadeiro homem, sendo, todavia, uma só pessoa.

2. Refundir o Molde

O problema que se nos põe aqui relaciona-se com o facto de não haver nada especificamente cristão na visão mítica do mundo enquanto tal, quando apresenta a acção do Cristo como um acontecimento supranatural, como a incarnação de um Ser celeste que, provindo "do outro lado", entra em cena neste mundo através dum nascimento miraculoso.

O que se nos impõe a nós, rosacrucianos, é velar para que a essência dos ensinamentos cristãos não desapareça com esta linguagem fora de moda. É preciso banir-se, como supérflua, a existência de um Ser lá fora, acima e além do mundo. É necessário harmonizar o processo evolucionista do ser humano, enquanto desenvolve formas cada vez mais altas de autoconsciência, com a cristologia e, assim, evitar o ataque da apologética sobre o carácter adulto do mundo. Esta necessidade é evidente: o Cristo da apologética está constantemente a perder terreno, pois o ponto para além do qual a nossa compreensão não atinge vai recuando à medida que sobe a maré dos estudos seculares. Para isso valerá a pena olhar de novo para o que a Bíblia nos diz acerca de Cristo, para ver como se pode conservar, e até mesmo recuperar, o seu sentido mais profundo à luz desta interpretação rosacruz.

A sobrevivência do vocabulário da religião popular põe desde logo em perigo a lógica por condicionar o incondicionável. Incorporando, conjuntamente, atributos divinos e humanos, visivelmente incompatíveis entre si, afirma que Deus, ou Cristo, que é eterno, "encarnou" em Jesus transformando-se num ser humano temporal. Reconhecer o absurdo da afirmação sem o resolver, mais do que tolerar a linguagem tradicional, é tornar o cristianismo irracional.

Diz Max Heindel: "O discípulo faria bem recordar sempre o seguinte: o que não é lógico não pode existir no Universo e que a lógica é o guia mais seguro em todos os mundos"1. Os princípios lógicos são universais. Mas os teólogos eclesiásticos abstraem-se dos seus princípios e reforçam continuamente o irracionalismo de Tertuliano a Kierkegaard.

Não podemos renunciar ao uso das nossas faculdades no estudo dos textos evangélicos para cair no absurdo da teologia do paradoxo. A lógica humana é uma ferramenta que tem de ser usada no estudo dos textos bíblicos. Tão-pouco devemos aceitar que os autores bíblicos se eximam dos princípios lógicos, designadamente da lei da contradição.

Para que algo seja real é necessário que seja possível, isto é, pensável, livre de contradição. O princípio da não-contradição, essencial para o pensamento, é condição para toda a realidade: para que algo seja real é preciso ser racional. Com frequência, tal princípio é considerado ontológico e, neste sentido, enuncia-se do seguinte modo: "É impossível que uma coisa seja e não seja, ao mesmo tempo, a mesma coisa".

Como pode, então, o Logos solar, enquanto se autolimita, ser o sujeito da paixão, da agonia, da desolação e da morte na cruz e, ainda assim, ser também, ao mesmo tempo e no mesmo instante, o doador da vida, neste e noutros planetas?

Cristo é "um espírito solar"2. Dotado da plenitude dos atributos divinos, tem a seu cargo "a tarefa de enviar os impulsos espirituais directamente do Sol espiritual"3, de que "é regente"4, para os "planetas situados à distância necessária para assegurar a intensidade vibratória conveniente à sua evolução"5. Como pode ser ele, então, ao mesmo tempo, um ego, ou "eu", humano, despojado exactamente dos atributos da transcendência que fazem dele um Cristo, e, ao mesmo tempo, reagir, coordenar e vitalizar o Universo como um Logos solar?

Como pode um Logos solar, dotado de tais atributos divinos, limitá-los ao ponto de não estar consciente de os possuir, de restringir a sua própria actividade mental aos limites de um ser humano e, ao mesmo tempo, permanecer na posse e no uso desses poderes?

Para contornar esta impossibilidade lógica, a teologia eclesiástica procurou fundamentar o seu ponto de vista sobre a "encarnação" – que não é uma expressão bíblica – num documento de S. Paulo: a carta aos Filipenses 2,7.

Mas, de facto, esta carta não foi escrita com a intenção de esclarecer o problema das duas naturezas, a divina e a humana, de Jesus. Prova-o o facto de o contexto ser uma exortação à perseverança, ao amor fraternal e à humildade: "nada façais por egoísmo... Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Jesus...". Trata-se, portando, de uma proposta para um exercício de recentração da actividade humana na vida da comunidade cristã. De facto, hoje sabe-se, à luz do rosacrucianismo, que o homem é um ser chamado a construir-se como pessoa em relações com os demais. Para lá do eu-individual tem de emergir o eu-pessoal-espiritual cuja plenitude se alcança na comunhão com todos os outros. É o que diz Max Heindel: "o nosso crescimento anímico depende da maneira como partilhamos o que temos com a comunidade a que pertencemos6.

Temos aqui outro exemplo de uma boa metáfora que é transformada numa péssima metafísica.

O escândalo (pedra de tropeço) que identificamos no episódio que nos fala do sinal de Jonas7 em que a generalidade dos discípulos se mostra incapaz de identificar o sinal do mestre, repete-se na tentativa de exprimir o carácter de Jesus de Nazaré com a linguagem ininteligível e ilógica da doutrina quenótica8: em vez de esclarecer, torna-o pura e simplesmente inaceitável.

Numa época em que a mitologia era considerada uma forma totalmente natural de descrever as coisas, quando o universo era descrito de uma maneira ingénua, não havia necessidade de diferenciar ou pôr ênfase no sentido metafórico das palavras. No entanto, lembremo-nos, a Bíblia faz constantes avisos do perigo de todas as imagens, e não só das imagens esculpidas. Agora, cada vez mais, é absolutamente necessário evitar a imagem – e até baní-la – se se quiser manter a verdade que ela pretendeu representar.

Presentemente tal representação simplista de Cristo é fonte – ou dá ocasião – de grandes problemas. Não chega a ser exegese. Não passa de simples acomodação das asserções bíblicas aos padrões do preconceituoso sistema teológico e à manifesta incapacidade de resolver o enigma.

A impossibilidade axiomática9 de o menor poder conter o maior é claramente esclarecida por Max Heindel ao referir o absurdo da transmigração, com fundamento na impossibilidade de um ser incorporar, conjuntamente, os atributos de estádios evolutivos diferentes, visivelmente incompatíveis entre si10, 11, 12. Um corpo animal habitado por uma mente humana não poderia ser um animal genuíno.

Antes de irmos mais longe temos de parar aqui para verificar exactamente o que é que se entende por "encarnação". Por outras palavras, vamos analisar em que consiste a conexão íntima de amor e liberdade entre Cristo e Jesus e ver como ela é uma relação mais interior do que exterior à personalidade do Nazareno. É obvio que vamos usar palavras inadequadas que podem suscitar equívocos e ambiguidades13. Mas teremos sempre em mente o cuidado de Max Heindel ao escrever o Conceito: Quando se fala de Deus todas as palavras são imperfeitas14.

Talvez uma analogia com a vida de S. Paulo seja esclarecedora, por ser um autor neo-testamentário que viveu, com grande intensidade, a passagem à existência cristã e formulou o problema da sua natureza com base na sua própria vivência. É o que iremos ver no próximo número.

Francisco Coelho

Próximo capítulo: A Experiência de Damasco e a Encarnação

Notas

1 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, F.R.P., Lxª, 2005, Cap. XVII, p. 346.
2 Id., ob. cit., Cap. XVI, p. 321.
3 Id., ob. cit., Cap. XV, p. 318.
4 Id., ob. cit., Cap. XV, p. 321.
5 Id., ob. cit., Cap. XII, p. 219.
6 Id., Ensinamentos de um Iniciado, F.R.P., Lxª 2001, Cap. IV, p. 34.
7 Id., ob. cit., Cap. II, pp 17-23.
8 Kénosis, substantivo grego, usado com o sentido de "vazio, vacuidade".
9 A palavra "axioma" significa uma verdade evidente por si própria ou universalmente reconhecida, uma verdade que não tem necessidade de demonstração.
10 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; Cap IV, p. 126.
11 Id., O Véu do Destino, F.R.P., Lxª, 1996; Cap. IV, p. 48.
12 Id., Questions and Answers, Vol. I; L. N. Fowler & Co, Ld., London, s/d.; p.145.
13 Id., Conceito Rosacruz do Cosmo, Cap. "Uma Palavra ao Sábio", p. 12.
14 Id., Ob. cit.; Cap X, p. 188.




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