Filosofia
O Sentido de Festa
O espectáculo das grandes mudanças por que passa anualmente a face da terra impressionou profundamente a mente dos homens em todos os tempos. Levou-os a meditar sobre as causas de tão vastas e maravilhosas transformações. A admiração e o temor perante as forças da natureza, poderosas e adversas, imanentes ou transcendentes, deu lugar à reverência. Nasceram os exercícios de ascese e oração com fins diversos: impetratórios, em ocasião de perigo; propiciatórios, diante do pecado ou a culpa, e apotropaicos face ao mal e suas forças.
A admiração e o temor são o fundamento de toda a religiosidade. Mas devemos distinguir a “religiosidade” da “religião”. A religiosidade é um sentimento pessoal. Por meio dela exterioriza-se a admiração e a veneração por algo transcendente ou divino, tremendo ou fascinante. A religião é um sistema estruturado e socialmente organizado de crenças, hierárquico, jurídico, controlador de dogmas.
A religiosidade dá origem a um conhecimento conatural – ou emocional. A exaltação entusiástica deixa o homem como se estivesse possuído pelo divino, que tal é, precisamente, o significado da palavra grega “entusiasmo” (en+Theós = Deus dentro). Esta forma de inspiração dá origem a histórias – chamadas “mitos” – que explicam determinados acontecimentos. Baseiam-se num saber que não brota do lado de fora: depende unicamente da percepção e da sensibilidade pessoal e é, mesmo assim, incomparavelmente mais eloquente e probante que muitos dados externos do argumento racional.
Ao contrário da ideia corrente, o mito não é um conto simplório e fantasioso, que se opõe, ou que está em desacordo, com a realidade e a história. É um “instrumento” que ajuda a compreender o significado real de certos acontecimentos. É um cordão umbilical: liga o homem ao seu passado remoto, às suas memórias ancestrais. Facilita uma espécie de regressão da memória que possibilita vivenciar acontecimentos longínquos ainda que envolvidos numa linguagem obscura. Por isso, o mito tem duas funções. Uma, é mística: ajuda a re-ligar à essência espiritual que temos dentro de nós. A outra, é uma função cosmológica, que promove o amadurecimento espiritual e psicológico.
Foi através da linguagem dos mitos que a humanidade primitiva aprendeu as verdades que devia conhecer1. Funcionaram exactamente como as modernas histórias infantis, ilustradas, que usamos para ensinar às crianças coisas que ultrapassam a inteligência infantil2. Platão faz uso frequente de imagens míticas para apresentar vários pontos do seu raciocínio3. Fernando Pessoa conhecia-lhe a razão de ser. Disse ele, a propósito de Ulisses, o mítico fundador da cidade de Lisboa:
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo4.
Como a religiosidade popular é instintiva e extrovertida, a festa torna-se o momento privilegiado de culto onde se cria e recria a convivência com o passado e o Todo.
O cristianismo nascente absorveu o sentido mítico da festa por osmose mas interpretou-o de outro modo5. Já estudámos noutra oportunidade a relação da festa da Páscoa com o equinócio da Primavera6; do S. João, que tem origem celtibérica, com as suas fogueiras características, as alcachofras, as flores místicas e as ervas bentas, com o solestício de Verão7; do S. Miguel e S. Bartolomeu, festas típicas de lavradores e pastores que se ligam às colheitas, com o equinócio de Outono8. Mas é no Natal que o homem sente mais fortemente as suas raízes telúricas e a necessidade do nascimento de um Salvador. No hemisfério Norte, com os campos cobertos de neve, o nascimento daquele que faz ressuscitar a vida e promete colheitas fartas é indispensável para a sobrevivência. Por isso diz-se que Jesus nasceu no decorrer do solestício de Inverno, à meia-noite, em 25 de Dezembro9.
Também há uma forte ligação da religião, natural e estruturada, com as poderosas e adversas forças da natureza – ou fenómenos que provocam temor ou admiração. É o caso do “fogo de santelmo”. É um fenómeno luminoso, uma pequena chama que às vezes se vê durante a noite no topo dos mastros e nas gáveas das embarcações. Tem origem na electricidade atmosférica. Luís de Camões e os marinheiros do seu tempo conheciam-no bem. Diz o poeta:
Vi claramente visto, o lume vivo
que a marítima gente tem por santo,
em tempo de tormenta e vento esquivo,
de tempestade escura e triste pranto10.
Como o deslumbramento favorece o numinoso, facilita a possibilidade de hierofanias e predispõe para o sagrado, o fogo de santelmo foi tomado como a intervenção de uma potência espiritual. Nada melhor para representar essa presença protectora do que uma figura humana. O fenómeno, assim materializado, torna-se mais facilmente num íman de atracção espiritual. Depois, se a hagiografia se apresentar de forma atraente, sedutora, completará o efeito da imagem para incentivar a devoção nos crentes.
A biografia idealizada dá-lhe um nome: S. Telmo. É-nos apresentada com todas as garantias de autenticidade – por mais que o seu objectivo seja precisamente enaltecer a devoção e deva ser tomada como literatura religiosa exortativa. S. Telmo tornou-se o padroeiro dos marinheiros e a sua festa realiza-se a 15 de Abril. Em Massarelos, na zona ribeirinha da cidade do Porto, existe mesmo uma relíquia “autenticada” pelas autoridades, a civil e a religiosa!11
Hoje perdeu-se o sentido de festa. Da festa que não é assistência passiva a um espectáculo de drogagem de massas, mas participação comunitária de todos e de cada um, através da qual, ao longo do ano, em certas ocasiões, os homens comunicam de uma forma viva e humana entre si e com o Universo.
O que vemos, ao entrarmos no século XXI, é que o homem está asfixiado pelo “sistema”: trabalho de manhã à noite, índices de produtividade, ocupação total do espírito pelas tarefas áridas e sem criatividade pessoal.
Com esta existência tensa e intensa anseia por refazer as forças abaladas, noutro clima ou noutro ambiente, por se entregar a actividades que o quotidiano “normal” não permite.
É certo que as sociedades antigas não tinham férias. Mas também é verdade que elas viviam ao ritmo mais pacífico e natural das estações que sucedem às estações, dos dias que sucedem aos dias. E, principalmente, tinham as suas festas. Festas que eram celebrações da vida na sua profundidade, ôntica e ontológica, que serviam de porta de entrada no espaço do sagrado e no mistério, que eram uma verdadeira catarse regeneradora de toda a existência.
Nas sociedades actuais as férias são uma necessidade vital e, portanto, um direito natural. Exigem-nas as condições de existência e o rendimento do trabalho. Conseguem-se esses objectivos em larga escala? Faltam-nos informações suficientemente amplas e rigorosas. Mas afigura-se que, em grande parte, a fiarmo-nos do conhecimento de vários casos, a evasão dos quadros de uma existência sempre igual não permite a cada um encontrar-se a si mesmo, meditar no sentido da própria existência, contemplar a natureza. Em vez disso, mergulha-se em “divertimentos” entorpecentes e hipnóticos, onde a presença é unicamente passiva: televisão, espectáculos desportivos, etc. Vemos até que, por vezes, a festa ressurge nas contestações colectivas, onde se introduzem elementos lúdicos que poderiam ter recebido outras canalizações e sublimações.
Em suma e para terminar: se o rosacruciano da nossa época, empenhado e atento, não pode remeter-se a uma cómoda passividade, a um confortável adormecimento e a um desprendimento egoísta, antes deve, na sua dinâmica, contribuir para esclarecer o autêntico sentido da vida. Interessa-nos, pois, esclarecer que a festa é uma dádiva e uma tarefa. Enquanto dádiva, permite, ao longo do ano e em certas ocasiões, receber os benefícios espirituais que resultam da comunhão de uma forma viva e humana com a natureza e da noção de harmonia e unidade fundamental de todas as coisas. Como tarefa, leva-nos a tomar consciência da necessidade de contribuir para a compreensão clara dos momentos altos das festividades cíclicas. Existe nelas uma constelação de elementos míticos tomados pelas confissões religiosas literalmente, como realidades históricas. Mas também há nelas um profundo sentido cósmico e espiritual, moral e anagógico: é este que importa ter em conta para levar à edificação e valorização do homem todo e de todos os homens. É que, assim animado pela compreensão do sentido da festa, o homem tende a superar-se a si mesmo atingindo conscientemente um estado superior, ultra-humano, que se encontra já nele em estado de germe.
Ariel
Notas
1 Max Heindel, Iniciação Antiga e Moderna; Ed. F.R.P., Lxª, 1999; pp 7-8.
2 Id., Mistérios das Grandes Óperas; Ed. F.R.P.; Lxª, 1997; pp 5-6.
3 Platão, Fédon, 61-b. pp 38-39, Guimarães Ed., Lxª 2003; A República, Livro II, 376e-377a. pp 64-65, Id., Lxª 2005.
4 Fernando Pessoa, Mensagem; Edições Ática, Lxª, 1997; p. 27.
5 R. Bultmann, Primitive Christianity: Thames and Hudson, London, 1983: pp 175-179.
6 Francisco Marques Rodrigues, Páscoa Florida, in Revista Rosacruz, nº 351, Janeiro, Fevereiro e Março de 1999, p. 4-6.
7 F. Coelho, As Festas Religiosas e os Signos do Zodíaco; in Revista Rosacruz, nº 328, pp 21-23.
8 Francisco Marques Rodrigues. S. Miguel e S. Bartolomeu, in Revista Rosacruz, nº 349, Julho, Agosto e Setembro de 1998, pp 18-21.
9 Id., Natal, in Revista Rosacruz nº 358, Outubro, Novembro e Dezembro de 2000, pp. 11-14.
10 Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 18; Liv. Sá da Costa, Vol IV, 1968, p. 254.
11 “Atestado pelo Instituto de Medicina Legal”. Cf. Jornal de Notícias, Porto, 11 de Junho de 2006.
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