Mensagem de Reflexão para o mês de Dezembro

 

Servir só para si é não servir para nada.

Do Mitraísmo ao Cristianimo

Os Romanos tinham diversos deuses. O número das suas divindades deve ter sido imenso. Uma parte foi retirada do panteão grego e das regiões conquistadas. Os Lares e os Penates são dos mais conhecidos. Os Lares eram os espíritos dos antepassados1. A sua função era a de proteger a casa. O culto consistia em ter uma estátua ou imagem, colocada junto à lareira, numa aedes, nicho, ou num lararium, uma espécie de oratório ou capela particular. A estátua tinha, naturalmente, um significado simbólico. A sua finalidade consistia em manter viva a memória dos antepassados e pedir-lhes protecção. Neste contexto familiar e íntimo, cada um ia desenvolvendo lentamente o seu lado espiritual. Alumiavam-na com lâmpadas, símbolos de vigilância. O fogo simboliza a alma e nunca devia apagar-se. O pai, descendente directo dos antepassados, o paterfamílias, deveria responsabilizar-se por manter vivo o culto e seus rituais2. Os Lares Compitales, ou Lares que guardavam as encruzilhadas, possuíam um nicho em cada uma delas. E os Lares Praestites, os Lares Protectores, guardavam os caminhos e as muralhas. Uns e outros lembram-nos as nossas tradicionais “alminhas”.

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No primeiro século da nossa era, as religiões de mistérios do Oriente já haviam penetrado no mundo romano através a colonização romana. Exerceram profunda atracção sobre os Romanos. E as razões não são difíceis de compreender.

Mitra sacrificando um touro. Museu do Vaticano

Mitra sacrificando um touro. Museu do Vaticano

Todas as práticas religiosas romanas exigiam pouco do indivíduo, além dos actos do ritual. Porém, os cultos do Oriente — caso do mitraísmo — implicavam um relacionamento mais profundo entre as pessoas e o divino. Por meio de actos de autêntico altruísmo, de meditação, de iniciação e de conduta irrepreensível, o crente conseguia atingir o conhecimento da verdadeira natureza do universo e alcançar felicidade, nesta vida e nas futuras. O processo de iniciação secreta nos mundos superiores fez com que a religião ficasse cheia de novas possibilidades, trazendo o sentimento profundo de verdadeira relação entre o homem e a divindade, aspecto em falta nos rituais romanos e na religião oficial de Roma.
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)
A religião mitraica estava já impregnada de Astrologia pela influência dos Caldeus. A superioridade ontológica da região celeste face à região terrestre e, portanto, a dependência dos acontecimentos terrestres face aos corpos celestes, ou seja, de uma cosmologia fundada na astrologia, já estava definida nesta altura. Padre António Vieira recorreu frequentemente a este ponto de vista. Leia-se o Sermão da Segunda Dominga da Quaresma5. Além disso, a utilização do Sol, como metáfora de Cristo, é também uma constante em todo o sermonário de Vieira.
Como o oráculo délfico havia reconhecido, os deuses antigos já eram uma força extinta. O budismo havia fracassado em todas as tentativas para Ocidente. O druidismo não passou de uma forma exclusivamente nacional e sem alcance universal. As iniciativas gregas de reforma, o orfismo, os mistérios, não conseguiram fornecer ao espírito alimento sólido.
O culto de Mitra foi aglutinado pelo imperador Aureliano em 270 d. C. ao culto oficial imperial do Sol Invictus (o Supremo Deus do Sol) e equiparado à divindade solar babilónica Shamash e ao Hélios grego. Tornou-se o mediador entre os poderes celestes e a espécie humana. Mesmo assim, e apesar ser uma religião suficientemente bem estruturada e dogmática, o mitraísmo também não conseguiu convencer o mundo.
Entretanto, o cristianismo surgiu numa região geográfica estratégica. Espalhou-se rapidamente para Oeste ao longo das estradas comerciais. Depressa chegou à Europa. Dava aos convertidos uma força poderosa que fornecia um incentivo para viver a vida espiritual, com base supramundana. E por isso atraiu número considerável de convertidos. Mas neste percurso acumulou numerosos elementos doutrinários estranhos. A fé recentemente adoptada assimilou muitas das crenças e práticas das antigas devoções.
Era inevitável que, baseado no princípio unificador que se traduziu na redução do número dos deuses do politeísmo a um único princípio cósmico divino interpretado como Causa Primeira, o cristianismo suportasse sucessivos confrontos com a civilização pagã até se tornar uma religião lícita, depois dominante, depois religião de Estado, depois subordinando o Estado à Igreja. Precisou de quatro séculos até alcançar o penúltimo estádio, o que evidencia a forte implantação dos cultos pagãos6.
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Em 378, Damásio, o bispo de Roma, consegue que o Imperador Graciano coloque o poder profano ao serviço da Igreja.
Cerca de dois anos depois, em 28 de Fevereiro de 380, um édito do imperador Teodósio determina: “todos os nossos povos devem juntar-se à fé transmitida aos Romanos pelo apóstolo Pedro, professada por Damásio e pelo bispo Pedro de Alexandria”. Isto implica, na prática, que apenas a Igreja Católica tenha existência legal.
O cristianismo surge como o herdeiro da sabedoria espiritual dos séculos e de numerosos cultos e sistemas religiosos rivais ou convergentes, no sentido que satisfaz as mais profundas necessidades do espírito humano. Dá algo muito mais definido e definitivo do que as outras formas religiosas que cedem o lugar à emoção, à alegoria e a certas práticas mágicas7.
Não é possível descrever aqui em pormenor esse fenómeno de apropriação e adaptação. Veremos apenas dois exemplos.
Na arquitectura, a tipologia das basílicas cristãs identifica a influência de nada menos que duas fontes culturais, distintas mas complementares, além da própria Bíblia: o Templo de Mistérios Atlante e a simbologia egípcia.
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Ao proceder assim o cristianismo intensificou a assimilação e transformação dos aspectos essenciais das religiões populares de feição animista e de cariz céltico-germânico.
Esta síntese de crenças mostra que nenhuma religião se constitui do nada e que todas as suas formas são feitas a partir de uma base e conteúdos já existentes: “à medida que um povo se civiliza, a religião torna-se mais humana e harmoniza-se com ideais mais elevados”9. E revela também que mudanças contínuas vão conduzindo a Humanidade, lentamente mas com segurança, para a “religião cristã”.10
O Cristianismo defende práticas verdadeiramente conciliatórias e inclusivistas, tornando-se uma força dinâmica em rápida expansão, daí ter sido tão bem acolhido nos ambientes novos. Acrescente-se ainda o facto do Cristianismo sustentar a ideia da perfeição do ser humano ideia apoiada num sistema moral rigoroso e num humanismo amoroso.
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Embora de certo modo distorcido pela fusão do genuíno pensamento bíblico com a cultura helenística — que levou a consubstanciar a fé nos dogmas — e, apesar de se constituir societariamente nos moldes da teocracia israelita — que levou à formação de uma Sociedade religiosa à semelhança das antigas sociedades pagãs político-religiosas onde a autoridade é exclusivamente poder —, o cristianismo tornou-se um movimento autenticamente novo na história. Impôs uma civilização original. Fundou uma nova escala de valores com novas motivações.

F.M.C.

1 O sentido primitivo de Lare é “senhor”, “superior”.
2 Paterfamilias: o homem que não tem ascendente masculino vivo (bisavô, avô, pai) ou que, embora o tenha, é emancipado. Na família é pessoa sui iuris, isto é, independente, pois não está sujeito ao poder de ninguém.
3 Equivalente a Héstia, dos gregos; e a Agni, dos indianos.
4 Penates provém de penus, -oris, “comestíveis, despensa”. Significava, a princípio, a parte interior da casa onde se guardavam as provisões.
5 António Vieira, Sermões, Vol 3, p. 74, Ed. Livraria Chardron, Porto, 1907.
6 Pagão é o habitante do pagus, aldeia. Tem um significado que, nos primeiros séculos da era cristã, expressava a distinção entre a cidade e o campo e também a diferença entre o cristão e o camponês politeísta.
7 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 4ª ed., Lxª, 2005, p. 131
8 Max Heindel, Iniciação Antiga e Moderna, p. 17-18; Maçonaria e Catolicismo, Cap. IV; F.R.P., Lisboa, 1997; Cf. Cr. 4; 1 Rs 6,23-26.
9 Id., Conceito Rosacruz do Cosmo, 4ª ed., Lxª, 2005, p. 249.
10 Id., Ob. Cit., 4ª ed., Lxª, 2005, p. 131.
11 É a influência do núcleo esotérico duma religião que lhe garante o desenvolvimento e a longevidade. A ideia mais próxima e capaz de evocar o que seja esse núcleo, seria a de uma influência criadora, análoga à inspiração, tão consubstancial ao espírito como a hereditariedade a corpo.


Glossário

Agni – Deus indiano do tempo védico. Era o intermediário entre os deuses e os humanos.
Alminhas – Pequenos monumentos dedicados ao culto dos mortos, frequentes nos caminhos, encruzilhadas e em lugares considerados perigosos. São pequenos nichos incrustados em muros, com paineis de azulejos, cruzes ou imagens. Fruto da religiosidade cristã, têm origem nos Lares Viales (das estradas) e Lares Compitales (das encruzilhadas). Protegem os viajantes, as terras e os casais próximos. São vulgares em todo o país, embora mais frequentes no Norte e nas localidades rurais. Portugal é o único país onde se encontra este património religioso.
Héstia – Deusa grega familiar. Foi a protectora da casa. Participava em todos os sacrifícios oferecidos pelo pai de família.
Mitra – Na religião dos persas significa “deus da luz”. Também era conhecido no Avesta, escrituras do Zoroastrismo. Situa-se a data do nascimento Zoroastro por volta de 600 a.C. Mas para muitos investigadores poderá ter sido o primeiro dos grandes profetas das religiões do mundo, no início da Idade da Pedra.
Vesta – Deusa romana do lar e do fogo. O seu culto data dos tempos mais remotos de Roma. No templo de Vesta, as sacerdotisas, as vestais, mantinham o fogo perpétuo.


Bibliografia

Ferreira, Cónego J. Augusto – Archeologia Christã; Livraria Povoense Editora, 1916.
James, E. O. – Os Deuses Antigos; Editora Arcádia, Lisboa, 1966.
Ling, Trevor – História das Religiões; Editorial Presença, Lisboa, 1994.
Loisy, Alfred – Los Mistérios Paganos y el Mistério Cristiano; Paidos, Barcelona, 1990.
Matos, José Luís de – Igreja Católica, o Choque de Paradigmas; Caminho, Lisboa, 2007.
Négrier, Patrick – El Templo y su Simbolismo; Kompás, Madrid, 1998.
Paiva, Almeida – O Mitraísmo; Ed. José dos Santos, Lisboa, 1916.
Ragon, J. M. – La Messe et ses Mystères Comparés aux Mystères Anciens; Paris, 1882.
Rich, Annet C. – Cristo ou Buda?; Fraternidade Rosacruz de Portugal, 2010.
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