VIAGENS FILOSÓFICAS - 2022
Mosteiro da Batalha
Em 2022 a nossa “viagem filosófica” encontrou no Mosteiro da Batalha, no distrito de Leiria, a oportunidade para admirar e estudar um monumento que é, indubitavelmente, um dos mais notáveis da Península Ibérica e de toda a Europa.
Esta visita deixou em todos os participantes uma perdurável recordação, tanto pela imponência do edifício como, simultaneamente, pelas gentilezas que receberam das entidades que se associaram ao espírito do encontro.
A Arte do Mosteiro da Batalha
Em Portugal há três monumentos representativos do estilo gótico. Já visitámos um deles: o Mosteiro da Alcobaça. Nessa oportunidade vimos que na arte gótica se identifica claramente, e nela está bem visível, a ligação entre o plano físico (humano) e o espiritual (cósmico). Todos estes monumentos são livros de pedra onde estão inseridos diversos símbolos que nos contam parte da história mística da nação e dos membros das primeiras guildas, ou grémios de construtores.
Na evolução artística da Batalha, a obra fundamental é de natureza gótica como se vê logo pelo aspecto exterior do mosteiro, uma construção que é tão admirável como a catedral de Notre Dame, em Paris, ou a de Colónia, na Alemanha. Não deixa de impressionar a sua monumentalidade e o simbolismo expresso em cada espaço, desde o rendilhado que ornamenta o exterior, à planta em forma de cruz latina e às várias capelas no interior.
Antes do início da Batalha de Aljubarrota, D. João I confia, à maneira medieval, que o resultado ficaria ao juízo divino (1).
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Em 1927, uma lista dos “mestres da obra” apresentada por Reinaldo dos Santos, apenas se refere ao Mestre David Huguet (Aquete, Ouguet ou Huet) que Alexandre Herculano imortalizou no conto “A Abóboda” (2). Mas James Murphy (1760-1814), que veio a Portugal para desenhar o Mosteiro da Batalha, referiu-se ao inglês Stephen Stephenson como sendo o “arquitecto da Batalha” (3).
George Landman, um engenheiro militar com conhecimentos de arquitectura e familiarizado com a obra de Murphy, também se lhe refere em 1818 (4).
Poderá admitir-se que Afonso Domingues tenha sido o primeiro vedor (fiscal das obras) real, ou arquitecto, desde o início da obra, em 1387, mas não se pode concluir que tenha sido o único (5).
Ora, sabe-se que o Mestre Stephen Stephenson, que pertencia à Loja de York, cidade de Inglaterra a cerca de 289 km de Londres, podia ter participado na construção da catedral daquela cidade, iniciada em 1245 e já na fase final de construção quando, em 1387, se iniciaram os trabalhos da Batalha. Afigura-se, por isso, que a influência directa da catedral de York sobre o monumento português é perfeitamente lógica (6).
Um facto, secundário na aparência, pode confirmar esta possibilidade. Algumas expressões portuguesas associadas a elementos arquitectónicos parecem confirmar a influência da língua inglesa: mainel (mainel), botaréo (butress), gárgula (gargoil), etc. Admite-se, pois, aceitável que esses celebres arquitectos e oficiais de cantaria de longes terras, referidos por Frei Luís de Sousa tenham pertencido à corporação de York, já que as nossas relações com a Inglaterra eram, então, bastante fortes, ainda que não houvesse uma “representação diplomática” permanente.
Recorde-se, a propósito, que D. João I casou com Filipa de Lencastre, filha do duque de Leicester, João de Gant, irmão de Eduardo de Langley, em cujo condado se ergueu a catedral de York.
virada para Poente
Tendo em conta o que ficou dito no número anterior, podemos aceitar que o início das obras do mosteiro da Batalha tenha ocorrido em 1387 e que o seu planeamento e construção tenha sido da responsabilidade, pelo menos em parte, de arquitectos e operários ingleses que faziam parte da referida oficina de York. Tal facto, que se afigura lógico e natural, pode explicar também que Afonso Domingues poderia muito bem ter sido o primeiro vedor, isto é fiscal das obras, do Mosteiro da Batalha(7).
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Participantes do Almoço
Um trabalho sobre um monumento de cariz místico jamais poderia ser considerado completo sem abordar a questão dos símbolos. De facto, já antes da utilização da escrita como meio de transmitir mensagens e ensinamentos, existia uma forma de comunicação, porventura mais desenvolvida, por se tratar de um método que consubstanciava a parte material (decorativa) e a parte esotérica (simbólica). Esta forma de transmissão de factos e ensinamentos chama-se simbologia.
Daí que tivéssemos iniciado a nossa visita pela análise da orientação e do simbolismo do pórtico do Mosteiro da Batalha.
Portal do lado Sul
Estátua equestre de Nun’Álvares Pereira, de autoria de Leopoldo A. Vaz Martins
Foi inaugurada em 27 de Abril de 1968
O Mosteiro da Batalha está ritualmente orientado no sentido leste-oeste. Tem a fachada principal virada para o lado Poente e, por isso, a cabeceira (ábside), está voltada para o Nascente. É uma regra que remonta à mais alta antiguidade. A orientação ritual da oração, que deu origem a esta regra, tem origem nas primeiras comunidades judaico-cristãs por ser no Oriente que nasce o Sol, o símbolo de Cristo, chamado o Sol da Justiça (Mal 4, 2; Sal 84(83), 11).
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Antes de entrarmos devemos recordar a necessidade de reaprender o profundo valor dos gestos mais simples, como diz Romano Guardini, já que, na maior parte das vezes, não passam de simples gestos maquinais.
“Passar a porta”, ou “entrar no templo”, parece um gesto demasiado insignificante para se lhe prestar atenção. Todavia, existe um mistério nesta “passagem”. Por isso, os “ritos de passagem” são comuns a quase todas as sociedades porque, “transpor uma porta” e entrar, ainda que seja na habitação maus humilde, representa algo que deve despertar respeito e solenidade e torna-se, naturalmente, um rito.
Compreende-se que assim seja porque, antes de qualquer acção litúrgica que aí decorra, o templo é uma revelação divina que dá seguimento à revelação cósmica do Verbo no decorrer do acto criador.
A observação do simbolismo que está associado ao pórtico permitir-nos-á esclarecer o que se deve examinar em primeiro lugar, porque essa atenção condicionará o conhecimento da parte restante do edifício.
O portal do Mosteiro da Batalha impressiona desde logo pela dimensão já que, em altura, ocupa quase metade da fachada e, em largura, se abre a toda a dimensão da nave central.
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Por cima dos apóstolos, e ocupando as seis arquivoltas do pórtico, está um conjunto de imagens que nos lembra os habitantes do mundo celeste, todas organizadas hierarquicamente.
Neste conjunto, os apóstolos assumem a simbólica função de guardiães do umbral.
Esta hipótese é tanto mais verosímil quanto é certo que, com esta mesma função, e tendo em conta a sacralidade de uma passagem quando se tratava de separar o lugar santo do mundo profano, como o portal de um templo, se colocavam à entrada dos edifícios sagrados os chamados “guardas do limiar”, leões ou esfinges, como os que ladeiam o acesso ao templo egípcio de Karnak.
A esfinge foi inicialmente símbolo do poder real, depois considerada “guardião do umbral” dos templos e dos túmulos, das personagens semidivinas ou mesmo divinas — como Jano um dos deuses mais antigos do panteão romano, ao lado dos Lares, Manes e Penates. Para o povo, tornou-se o deus das passagens e, por isso, consagrou-se-lhe o mensis Ianuarius, o mês de Janeiro, que assinala a passagem de um ano para o outro. Nas orações, Jano era citado antes de todos os outros deuses. Na antiga ordo sacerdotum o sacerdote de Jano, que era sempre um patrício, ocupava o primeiro lugar da hierarquia sacerdotal. A abertura e o fecho das portas do templo de Jano eram actos solenes que passaram a simbolizar a guerra e a paz e a sua chave simbolizava o próprio Jano.
No tímpano, por cima da porta, vê-se a figura do Tetramorfo, o Criador, rodeado dos quatro evangelistas que, sentados, escrevem, ou lêem, os livros de que são autores, convidando-nos à reflexão sobre o tão importante acto que é o de aceder a um templo. Identificam-se os evangelistas pelos seus atributos segundo a visão Ezequiel 1, 5-14, e de João 4, 6-8: o touro alado (S. Lucas); a águia (S. João), o menino alado (S. Mateus) e o leão alado (S. Marcos).
Este conjunto representa a universalidade da presença divina e toda a transcendência. No pensamento hermético, representa os quatro elementos: a águia simboliza o ar e as actividades intelectuais; o leão a força, o fogo e o movimento; o touro, a terra e o trabalho e o sacrifício. O Tetramorfo tem um simbolismo idêntico ao da cruz: um sistema de relações entre diversos elementos fundamentais e primordiais. a partir de um centro.
A grandiosidade dos pormenores do sumptuoso pórtico por onde se faz a entrada principal merece a nossa especial e demorada atenção.
Preste-se agora atenção ao tímpano, por cima da porta, onde vê a figura do Criador. Está rodeado pelos quatro evangelistas, que se identificam pela transposição plástica da visão de Ezequiel (1, 5-14) e de João (Ap 4, 6-8): o touro alado (S. Lucas); a águia (S. João), o jovem (S. Mateus) e o leão alado (S. Marcos). Sentados, escrevem, ou lêem, os livros de que são autores, como se nos convidassem à reflexão sobre tão importante acto como é o de aceder a um templo. Este conjunto das quatro figuras, a que se dá o nome de Tetramorfo (tetra: quatro), representa a universalidade da presença divina com toda a sua transcendência. E tem simbolismo idêntico ao da cruz: é um sistema de relações entre diversos elementos fundamentais e primordiais a partir de um centro.
Estas quatro figuras, que podem ser encarados no sentido cosmológico (natural) e espiritual, estão naturalmente associadas às quatro constelações cardinais do Zodíaco: Carneiro, Caranguejo, Balança e Capricórnio, como iremos ver oportunamente. Assinalam os quatro elementos constitutivos do mundo físico de acordo com o pensamento hermético - ou, mais exactamente, as potências espirituais que regem esses elementos, potências essas resultantes do sopro criador do Verbo: terra, água, ar, e fogo. Estes elementos que podem ser associados aos estados físicos da matéria: sólido, líquido, gasoso e plasma(8).
Quanto ao sentido espiritual vemos que a tradição judaica faz corresponder a cada um destes quatro seres uma letra do Nome Divino, YHWH, ou Javé, palavra que nunca se pronuncia. O Y corresponde ao ser humano, o H ao Leão; o W ao Touro, e o segundo H à Águia. O facto de cada ser ter uma letra do nome divino significa que o mundo sensível é uma emanação, ou expressão natural, do Criador (9).
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A antiga estrutura social de Israel tinha 3 níveis: nação, tribo e clã. A nação compreendia as 12 tribos, descendentes dos filhos de Jacob (Gn 29:32-35; 30:1-13, 17-24), associadas aos signos do Zodíaco. Cada tribo era constituída por 4 grupos e cada um deles associava 3 clãs. Cada tribo tinha uma pedra preciosa correspondente, fixada no peitoral do Sumo Sacerdote. E cada grupo de três clãs era representado por uma figura emblemática associada ao Tetramorfo: as tribos de Issacar, Zabulão e Judá eram representadas por um Leão; as de Rúben, Simeão e Gad, por uma figura humana; as de Efraim, Manassés e Benjamim, por um Touro; e as de Dan, Aser, Neftali por uma Águia.
Repare-se que esta fachada não é ornada de torres sineiras. Em vez disso, notam-se, perfeitamente marcados, contrafortes (também chamados “botaréus”) encimados por pináculos piramidais ornados de cogulhos (10). Estas pequenas pirâmides evocam a imagem da “montanha” cósmica, o Monte da Transfiguração que, noutras tradições, serviu de modelo para construção das pirâmides no Egipto ou dos zigurates da Suméria (11). No judeo-cristianismo correspondem ao Monte Sinai. Assim ornados, os contrafortes adquirem o simbolismo ascensional idêntico ao das torres sineiras.
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Nas referências simbólicas que podemos identificar no Mosteiro da Batalha algumas estão associadas à ordenação do espaço, qualificando-o e hierarquizando-o. Na bidimensionalidade característica do espaço plano assinalamos as suas quatro direcções principais: para a frente, para trás, para a direita e para a esquerda. Cada uma destas direcções corresponde, de acordo com a orientação primordial, aos quatro pontos cardeais: a frente corresponde ao Norte, a traseira ao Sul, a direita ao Leste e a esquerda ao Oeste.
Acresce ainda o facto de, na concepção volumétrica do espaço, haver mais duas que se devem acrescentar às quatro acima referidas: uma para cima e outra para baixo, considerando ainda uma terceira que, não sendo propriamente uma direcção, é a origem de todas elas — a que vulgarmente se chama omphalus (umbigo). O ônfale é, universalmente, o centro ou “umbigo” do mundo, quer dizer, o centro simbólico da manifestação física e espiritual, tal como o bétilo, a pedra que foi consagrada por Jacob (Gn 35, 14), ou os menires celtas dispersos pelo nosso país (12).
Numa abordagem qualitativa, em que o espaço e o tempo se associam, o Norte corresponde ao Inverno; o Sul ao Verão, o Leste à Primavera e o Oeste ao Outono. Além disso, o Norte corresponde à noite, o período em que a luz permanece “imanifestada” ou oculta, sendo a sua presença invisível mais directamente dirigida ao espírito que aos sentidos físicos; o Sul corresponde ao dia, ou ao tempo em que a luz se torna fisicamente perceptível e age directamente sobre os sentidos físicos; o Leste corresponde ao advento ou nascimento da manifestação física da luminosidade e o Oeste à morte dessa modalidade manifestada.
E agora, do ponto de vista astronómico, devemos ter em conta que os solstícios do Inverno e do Verão — Norte e Sul — marcam, respectivamente, os pontos em que o Sol se apresenta mais baixo e mais alto na linha eclíptica. São momentos de maior intensidade meteorológica, situações extremas no decurso do ano e a sua importância sobrepõem-se às situações equinociais, da Primavera e do Outono — Este e Oeste — em que se estabelece o equilíbrio entre a altura máxima e mínima do Sol. Deste modo pode dizer-se que as direcções ou posições solsticiais têm prevalência sobre as equinociais ou, mais precisamente, são primordiais em relação a estas.
Na construção de um templo “imita-se” a criação do mundo porque, segundo Platão, a função do arquitecto é a de ordenar, organizar e impor medida e proporção à matéria-prima que tem ao seu dispor. Por isso, constrói, com a sua criatividade, um edifício tridimensional e volumétrico, imitando assim o Criador ao qual chama o Grande Arquitecto do Universo porque, como diz o filósofo no Timeu, Deus é geómetra: ordena, organiza e impõe medida e proporção onde elas não existiam (69b), por meio da geometria e da matemática (53b-c) e, por isso, é o Pai e criador do mundo (29a).
Pelo que vimos anteriormente, o templo que iremos visitar não é apenas uma “imagem” do mundo cósmico. É bastante mais do que uma simples “imagem simbólica” do nosso mundo porque tenta reproduzir uma “imagem estrutural”, íntima e matemática, do universo.
Ora, se o templo é o lugar onde as influências do Céu descem à Terra e, em sentido inverso, as aspirações da Terra sobem ao Céu, numa sinergia entre as duas ordens de realidade como sugere a escada de Jacob, o portal principal pode ser considerado uma porta simbólica aberta para esse mundo do Além (Gn 28, 17). E, por isso, toda a sua decoração recorre aos dois simbolismos: o cósmico e o místico, que se completam e apoiam mutuamente.
As quatro portas do Mosteiro da Batalha repartem-se, como já vimos, segundo os quatro pontos cardeais e de acordo com os eixos dos solstícios e dos equinócios. Recorde-se que também os solstícios e os equinócios receberam o nome de “portas celestes” por assinalarem os momentos de passagem de uma estação para outra, ou seja, “determinarem” tempos distintos. Existe, por isso, uma correspondência entre os pontos cardeais, os quatro momentos do ano e as correspondentes estações e as respectivas portas:
Norte — Solstício de Inverno, constelação do Capricórnio; Noite (luz potencial, imanifestada; invisível, mas activa);
Sul — Solstício de Verão; constelação do Caranguejo, Dia (luz fisicamente presente),
Este — Equinócio da Primavera; constelação do Carneiro (advento ou nascimento físico da luz);
Oeste — Equinócio do Outono; constelação da Balança (“morte” da manifestação física da luz).
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Tornejando o maciço quadrangular da Capela do Fundador, do lado direito, chegados à fachada sul, no adro onde foi inaugurada em 27 de Abril de 1968 a estátua equestre de Nun’Álvares, de autoria de Leopoldo A. Vaz Martins, vemos outro portal. É de autoria do Mestre Afonso Domingues.
Se o compararmos com o portal principal veremos logo que, na sua construção, foi usada uma “linguagem” diferente. Com efeito, o portal do lado sul baseia-se manifestamente na tradição portuguesa e contrasta com o principal, que se considera de linguagem mais “actualizada”, da mão do Mestre Huguet.
A nota mais saliente deste trabalho é o conjunto dos elementos decorativos baseado na heráldica como ciência das armas e brasões da nobreza.
Já vimos, noutra ocasião, que no período histórico a que pertence esta monumental obra havia um núcleo de cristãos mais instruídos, dentro das ortodoxias religiosas e fora delas, composto por indivíduos libertos do conformismo imposto pela Igreja e pelo Estado, que eliminou rotinas e coacções mais ou menos generalizadas ao nível da cultura .
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Este renascimento espiritual associado à mudança de mentalidades, apurou, cada vez mais, a expressão esotérica por meio das artes e recuperou a linguagem simbólica da Tradição. Foram os magistri comacini que dirigiram a construção deste monumento e lhe conferiram a sua grande unidade do estilo ogival(13).
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O que distingue Afonso Domingues é a coragem de pôr em prática o ideal em que acreditou profundamente, rompendo como a rotinização da linguagem decorativa tradicional para expressar o renascimento espiritual associado à mudança de mentalidades que já decorria. E consegue-o com verdadeiro arrojo e inspiração estética, aliando-a à luz e ao calor do sol nascente da liberdade do pensamento em curso, como vemos na porta lateral, do lado Sul.
Por isso, além de elementos decorativos de carácter puramente geometrizante, apenas vemos, nas quatro arquivoltas de arco quebrado desta porta, o conjunto heráldico das pedras de armas de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, com total ausência de qualquer sinal ou símbolo religioso. Ao contrário da rica ornamentação da fachada principal, não se vislumbram neste portal quaisquer personagens místicas.
Em contraste com a simplicidade dos elementos decorativos de natureza geométrica, os capiteis mostram uma enorme riqueza naturalista de folhagem bem recortada e de caules ondulantes com parras. Este friso é uma estilização da Árvore do Mundo, que é um símbolo ancestral da Humanidade. O simbolismo da videira, como expressão vegetal da imortalidade, foi transferido para Jesus, “Eu sou a videira verdadeira” (Jo 15, 1) associando assim, mais uma vez, o simbolismo sagrado eterno ao simbolismo propriamente cristão.
A parra, a folha da videira, é um símbolo do conhecimento. Não foi por acaso que Noé, quando iniciou um novo ciclo, depois do Dilúvio, foi o primeiro a plantar a videira. E é, ao mesmo tempo, a expressão vegetal da imortalidade (14).
Pórtico do Lado Sul
Está situado no braço direito do transepto. No topo, a composição heráldica. Os brasões de armas usados como decoração substituem os símbolos religiosos e assinalam uma nova espiritualidade. Nos capiteis identifica-se uma decoração vegetalista.
Na Idade Média cristã, os artistas, tal como os escritores, tinham o hábito e o gosto de recorrer ao mundo animal, mineral e vegetal nas esculturas figurativas naturalistas, zoomórficas ou fitomórficas, não como motivo de distracção ou embelezamento, mas como verdadeiros símbolos com função didáctico-pragmática percebidos pelo público em geral, analfabetos e ignorantes.
Gablete do Portal Sul — Pormenor
Neste remate decorativo da porta lateral aberta no braço direito do transepto
identifica-se claramente a composição heráldica. Ao centro, as armas completas de Portugal: brasão, elmo, coroa e paquife. Em baixo, e dentro de quadrilóbulos inscritos em quadrados, os brasões coroados do rei e da rainha D. Filipe de Lencastre protegidos por baldaquinos com um trabalho de requintada micro-arquitectura
Dois altos contrafortes igualmente encimados de pináculos, idênticos aos da fachada principal, acentuam a diferença deste portal.
Todos estes pormenores assinalam a intervenção clara e determinante de leigos na nova espiritualidade que então se faz sentir em toda a Europa e, até, a presença de mecenas laicos no interior do espaço sagrado.
F. M. C.
(1) Fernão Lopes, Crónica de D. João I; Livraria Civilização; Porto, 1949, Vol. II; pp 101-102.
(2) Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, Vol. I, 28ª ed., Livraria Bertrand; pp 229-290.
(3) James Murphy (1760-1814), natural de Blackrock, próximo de Cork, na Irlanda; estudou desenho, pintura e arquitectura. Veio a Portugal em 1789 ao serviço de William Conyngham, para desenhar o Mosteiro da Batalha. Cf. Augusto Fuschini, A Arquitectura Religiosa na Idade Média; Imprensa Nacional, 1904, pp 243-244.
(4) Academia Portuguesa de História, II Jornadas de História da Vila da Batalha; Actas, 12 de Abril de 2003; p. 159.
(5) Augusto Fuschini, Ob. cit.,pp 236, 248.
(6) Id., Ob. cit., p. 244.
(7) Id., Ob. cit., p. 248.
(8) Jean Hani, Le Symbolism du Temple Chretien; G. Trénadiel, 1978, p.87
(9) Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo; F.R.P., Lxª,2005., pp 296, 394 ss, etc
(10) Pináculo: Pequena pirâmide, em pedra, que serve de coroamento dos contrafortes. Cogulho: Ornato de pedra que representa folhas retorcidas e encrespadas que rematam o pináculo. É frequente no estilo Gótico.
(11) Zigurate: literalmente, “monte dos deuses”. Torre de andares dos templos caldeus cuja forma servia para lembrar os lugares elevados onde os “deuses se manifestam”, como a torre de Babel, na Babilónia (Gn 11, 1-9).
(12) Bétilo (de beith-El, casa do Senhor, Gn 28, 17-18), é uma pedra em tudo semelhante aos menires, muitos deles interpretados de outro modo pelos arqueólogos. Conforme a sua configuração, têm carácter masculino ou feminino. É o caso da pedra sagrada semita, onde a divindade habita, mais tarde cristianizada com uma cruz insculpida, perto da Roça do Casal do Meio, em Sesimbra Cf. Ruy Ventura, O Eixo e a Árvore, Notas sobre a Sacralização do Território Arrábido, Apenas Livros, 2014.
(13) Cf. A Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça, II Parte. Revista Rosacruz Nº 430, Outubro, Novembro e Dezembro de 2018, pp 21-29.
(14) Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos; Círculo de Leitores, 1997.